quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

62. TEM JAGUAR POR PERTO

Não assusta a pegada de um jaguar faminto,

que atravessou a aldeia ofuscado pela madrugada,

nem o marcado pio do pássaro noturno.


Homens sussurram das redes bem trançadas,

sorriem dos cães que tremem de medo,

buscando a olfativa presença no farol dos olhos.


De manhã as crianças vão para o rio,

e nadam sob os olhos ocultos da sucuri,

trazem frutos, empunham armas, riem...


Altíssimas e retilíneas árvores gemem,

na beira do córrego de águas transparentes.

Um tucano observa os passantes

com o bico ensimesmado.


O jaguar urrou de novo, mas ninguém liga.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

61. INVERNO

Havia certa glória na chuva, tristeza de beiral,

um sopro frio nos corredores da casa assombrada,

o silêncio de bois pastando longe, no cocal,

e o império dos mosquitos anunciando a invernada.


Aves singravam os ares para um destinol final,

tínhamos tempo, a estação da semente purificada

abria-se em flor no húmus fecundo da terra molhada,

e roupas não secavam mais, penduradas no varal.


Então esperávamos as chuvas de coração aberto,

contemplando a neblina esmaecida no horizonte incerto,

de mãos dadas com o frio que durante a noite viria.


Era tempo de ouvir o pio da coruja no telhado,

e as inhambus-chororó escondidas no capim molhado,

madrugada a dentro, até que despontasse um novo dia.



quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

60. TOCAIA

No tropel invisível das mulas cardãs,

fruto doce, grito opaco, oco do sertão,

os cestos açoitados pelo olho do cão,

uma fala rouca na boca da manhã;


Não vi o tempo passar, bolando pelo chão,

o rifle apontado, coronha na espera vã

do queixal, sem pio de pássaro da hora sã,

o dedo seco, rogando o sinal da mão.


Um cheiro de besouro no ar purificado,

enquanto se contava as horas, esqueci

no leito do rio o silêncio santificado.


No torpor do sol onde canta o bem-te-vi,

desabei o corpo sujo no chão ressecado,

chorei mariposas, a morte não temi.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

59. SOBRE A MINHA FALA

Estou bem, mas choro, por dentro,

meu peito virou um córrego torto,

onde bichos noturnos aplacam a sede.


Vejo luzes tímidas, vozes ao longe,

o resto é silêncio ao redor, chama fria,

vacilando no vento constante da varanda.


Meu pensamento inválido, gira, 

afastado de mim mesmo, onde o gato

repousa os olhos de fogo.


Onde eu deixei a fala, não lembro,

um bago de coco abrindo, machado,

por certo, na fria sombra do mato.

58. ESPERANÇA MATEIRA

Sempre tem um rastro no caminho, um alguém

abrindo a vereda onde o pássaro azul canta

e o sol invade o flanco da floresta santa.

Seguimos a luz sem ajuda de ninguém.


Sempre haverá esperança, esse voo para além

do horizonte, a mais alta copa que se espanta,

no revoar nervoso de mil asas que encanta.

Muitos caminham nessa vereda também.


Dê a mão, sinta o gosto da fruta temporã,

dance a ciranda, dê o beijo da boca irmã,

como se hoje fosse o teu derradeiro dia.


Sempre haverá saída, cantemos a vitória

daqueles que podem fazer a própria história,

abrindo a trilha com o facão da ousadia.

sábado, 11 de novembro de 2017

57. SINAIS

Os sinais que vi, ninguém mais viu, é certo,

existiram como lembranças esgarçadas,

codinome do medo em loucas gargalhadas.

E calei, como que pregando no deserto.


Eu, jovem, tinha cisma com  o mar aberto,

temendo ouvir sereias em praias naufragadas

e sumir no mar, de lágrimas desfolhadas.

Vendi meu barco, por esse destino incerto.


Se os sinais que vi eram sonhos, não sei tampouco,

alimento poucas crenças, meu grito é rouco,

o olhar se apaga, como um farol de ilha perdida.


Esqueci de esperar, embora haja esperança,

nos sinais que te anunciavam, como lembrança,

no horizonte vermelho onde encantei a vida.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

56. MENINO DO SERTÃO

Fui menino que flutuou na correnteza,

o cobertor de sol sobre a pele queimada,

branca pluma, e tinha o afago de brisa alada ,  

imóvel remanso na água da tristeza.


No verão era a vertigem do redemoinho,

tapete de folhas, frutos caídos ao chão,

 o círculo do sol vermelho do sertão,

garranchos e cipós de multiagudo espinho.


De noite, ouvia o touro negro no curral

e a acauã anunciar o mormaço repentino;

na rede, entrevia passarinhos no beiral.


Dia de vento, era o ruidoso estrondo de portas,

o zigue zague zunindo das folhas mortas 

e o guincho dos macacos dentro do cocal.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

55. ESTÁTICA DO SILÊNCIO

No meu coração

deveria brotar árvores

e repousar ninhos.

Somente a estática das pedras e do chão

fazem o musgo, crescem raízes, criam as nascentes.

A vida emerge sem pressa e sem clamor.

As presas sobrevivem da inércia,

e da invisibilidade.

É na dormência dos remansos que habita o peixe,

e no rumor da brisa que soçobra a folha.

Como demoram afundar as raízes, 

como esperam as estações as flores e os frutos...

Os rebentos se geram sonolentos no ventre da mães,

os embriões dos ovos exigem chocas sem pressa.

Dentro da minha casca vive o silêncio.

54. PERTO DA CHUVA

Rumor de pedras conversando,

na beira do rio, musgo, limo e água.

A cada sussurro, um revoar de asas,

vespas, besouros, tiúbas e joaninhas.


Floradas. Cajus, manga, sapotis e azeitonas.

Grandes sombras de piquizeiros, jaqueiras,

com enfeites de pau d´arcos em flor.

O chão estala, range e racha,

lufadas de calor no rosto,

claridade seca, luz faiscando a retina.


O sol vermelho, bola de fogo lisa,

cravada no céu curvo, desmaiando

sobre árvores tortas, em transe, desfolhadas,

e, forrando o chão, sementes, sementes...

domingo, 15 de outubro de 2017

53. CARRASCO

Cada sol vermelho ardendo no céu,

árvores tortas, calor  vespertino.

Brandindo o chocalho, a tarde desce o véu,

e, triste, o mugido oco, o grito do menino.


Vão-se os pássaros sem destino, 

sobre mourões farpados, favos de mel,

queima o fogo no olho da cascavel

e ruge a fornalha no sol a pino.


Um fartume de cinza queima o rosto,

o zunir de cigarras sem recosto

que pousam na sombra do piquizeiro.

 
O suor derrama no chão a contragosto

e o aço das mãos queima no formigueiro

a sina furiosa do boi vasqueiro.

sábado, 26 de agosto de 2017

52. PESCARIA DE VERÃO


Meus pensamentos ficaram boiando no rio.
Eram lembranças de remansos largos,
debaixo de galhadas tortas no céu liso de agosto.

Era algazarra de pássaro, derradeiro papagaio
voando para casa, cortando o horizonte vermelho.
Em redor, a luz se recolhendo nas copas...

Eu mesmo deixei de ver certas coisas,
o chão marcado de cascos, os peixes nas locas.
De ver pouco, ouvi, apenas. Bugios e grilos.

Quando soou um berro, triste, do fim do dia,
acompanhei a sineta dos bodes, perfilados,
na trilha onde no final algum galo cantou no terreiro.







domingo, 20 de agosto de 2017

51. AGOSTO

Agosto é o mês que inspira cuidados no sertão.

É o tempo das cobras, que saem para vadiar,

é o tempo dos cachorros loucos e outras coisas tais...

Mas por entre os punhos da rede entrevejo o céu,

no azul sem nuvens, cortado por andorinhas.

Ouço os bem-te-vis destruidores de ninhos

e o ruflar das varandas me anestesiando o sono.

O gato malhado ressonando no tamborete,

sempre vigiado pelo calango, não inspira confiança...

O fato é que tanta preguiça 

não tem nada com o mês de agosto...

E eu não vou reclamar, depois de comer tanto

- prefiro o ranger das escápulas.

50. SENTIMENTO

Nunca pude olhar nos olhos da tristeza.

Ela sempre fugiu de mim, envergonhada...

Sou testemunha imune dos anos felizes,

e da mansidão do tempo, 

correndo como água do córrego.

Nunca entendi profundas mágoas,

grandes e indisfarçados ressentimentos,

porque estive com os pés na areia fina,

ou trilhei veredas sombreadas.

Não me convidem para festas,

onde se é obrigado a falar por falar,

e os cumprimentos obedecem rituais bisonhos.

Eu prefiro a luz do sol, o perfume do sal,

e longínquas barcas no horizonte.

terça-feira, 4 de julho de 2017

49.DELÍRIO

Trago nas mãos a marca implacável

da lua vermelha no vasto sertão.

Árvores secas e trincado chão

orientam o caminho mensurável.


Ao largo esvoejar do bote execrável,

meu tordilho negro corre espantado,

e meu coração dispara abrasado,

ao tremor do gesto improvável.


Sem medo do túmulo irrenunciável,

a canção brotando do solo duro,

meu silêncio incendeia o quarto escuro.


Com as mãos tensas, o gesto imutável,

despedacei troncos no peito e no ombro,

e ouvi estalar meu grito com assombro.

quinta-feira, 29 de junho de 2017

48. CEMITÉRIO DOS ANJOS

Eu me estranho ante o espelho quebrado,

mil faces retratam um espinheiro

do tucum; e da urtiga meu braseiro,

onde sinto o corpo em asas mutilado.


Insone, espero a luz do candelabro,

que orienta meu caminho indecifrável,

um tanto sangue, um tanto rosa afável,

na pedra rija do aluvião que lavro.


Eu me estranho diante do mundo triste,

onde pássaros morrem nas vidraças

e o homem fatigado não resiste.


Prefiro o ginete azul das desgraças,

o esgar da boca, o cutelo em riste,

o insano tropel das alvas carcaças.

domingo, 25 de junho de 2017

47. BERLIM

A outra metade está no secreto

interior de calda alma desterrada.

Entre nós há um muro de concreto

que faz do medo a língua mais falada.


Nascemos aborto, inconcluso feto,

contração da carne chorando o nada,

nu menino, sem mãe, sem pão e sem teto,

cavando a terra, órfão de foice e enxada.


A  face roída por um inseto

é o ventre aberto da mulher cansada,

o espasmo cru do coração inquieto.


Varíola dos anos, rede rasgada

onde o filho do filho fabrica o neto

e meu ciclo se fecha sem estrada.


sábado, 24 de junho de 2017

46. BUNKER

Alguém pode querer gritar ao lado

de mim, ferido e sem ninguém.

Que alguém pode assim ferir-se também

ao lado seu mais do que ao meu aberto lado.


Pois que chorar possa, não importa quem,

sob o seu flanco ferido e manchado.

Chore agora em soluço abafado,

ou alto grite, por por algo ou por alguém.


Não choro eu. A minha dor aqui não cabe

e ninguém da ferida minha sabe,

mais que aberta em corte mais que profundo.


Porquanto posso, mesmo que ferido,

esquecer da ferida, adormecido,

homorrágico a tudo, a mim e ao mundo.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

45. BACCHANALE

Morrer só, contando a moeda-miséria

tudo o que sobrará no final da festa,

como o que falta sem saber que resta.

Morrer é só, infecção diária, bactéria.


Deitar sujo em chão de mijos e bostas,

sentindo no pulso a obstruída artéria,

amante carnal da noite venérea,

corpo decepado em pútridas postas.


E resta no meu fétido final

solitário telhado de pedra e cal

onde meus ossos se dissolverão.


Morrerei só, como o jaguar final,

derradeiro da espécime fatal

de morte ferido em agreste sertão.


44. DEPRESSÃO

A dor que enfrento jamais foi pequena,

a morte que desafio desarmado

de mim, onde corre o tempo alvejado

por mil balas da minha surda pena.


Agora tudo é pouco nesta arena

de leões famintos e ser devorado

cristão ou mesmo ser crucificado

pouco importa à vida sem paz terrena.


Se eu morro sem Deus ninguém dirá

tampouco: uma esquerda hora que virá

em algum dos meus dias que não espero.


Por enquanto aqui vivo sem saber

até quando sem Deus eu vou viver

na estrada louca desse desespero.



43.CAIS

Esperar o mar não é como uma espera

qualquer. O cais se avizinha no instante

azul, o barco imita o choro infante

onde em pó a luz do cais se desfizera.


O mar é tudo. Ânsia que desespera

alma presa no porto mais distante,

sol de gaivotas tristes no semblante,

mortalha da morte que não nos dera.


Espero. Ainda que à hora de partir

ninguém que espere por mim possa vir

em aceno de madrugada irreal.


Pois basta que eu não sinta o coração 

no peito oculto ao descanso da mão:

o mar lava a alma na insânia do sal.




42. COMBOIOS

Amontoados sob o frio dos arroios

eles nunca souberam madrugadas

em sonhos de ferrugens e comboios

os guerrilheiros de armas alugadas.


E muitos daqueles que se perderam

trigo nos campos estivais de outrora

foram soldados nus por quem morreram

sóis em fogo: por esses ninguém chora.


Ficando a marca em cada um de nós

o clamor surdo de um silêncio atroz

estrela cadente em confins da terra.


Ficou essa marca em cada um de nós

grito mudo na multidão sem voz

paz da pátria falsa no ardor da guerra.





domingo, 18 de junho de 2017

41. CAVALEIRO FERIDO

Perdoa, se matei o teu ginete alado,

na exaustão da rocha, no ferir da espora

cega, pestilento cão anunciando o caipora.

Perdoa rápido, que passarei cansado.


Não olha para a serra, no cume adensado

onde vou desaparecer ferido por agora,

entoando os cânticos da derradeira hora.

Ouve apenas, com o coração trespassado.


Se com o tempo minha presença de vapor

diluir-se nas manhãs de luz, fímbria e ardor,

lembra o canto, sina do cavaleiro morto


que deitou tantas árvores pelas raízes,

soçobrou paineiras, afugentou perdizes,

e assim tombou flechado por um anjo torto.






40. VERÃO

Morre-se em decúbito, e sangrando o dorso,

onde o punho faz tinir chibatadas puídas,

sal branco por sobre a roxidão das feridas,

para calar o choro do meu navio corso.


Morre-se sem chão, com o lacerado torso

exposto ao bico das aves espavoridas;

sem razão morro, sob árvores parricidas

que me deitam no corpo folhas de remorso.


Viúvo de mim mesmo, espero rubras flores 

que adornam jazigos e lágrimas sem cores,

curvas pontilhadas de cruzes nos caminhos.


Contarei o tempo no silício das chapadas 

que incendeiam troncos e víboras tresmalhadas

quebram no meio a espiral dos redemoinhos.



quarta-feira, 14 de junho de 2017

39. SONETO DA DESPEDIDA

Foi brusco o nosso amor, e não me arrependo,

vigiei lamparinas, noites quentes a fio,

afoguei-me, incendiando meu navio,

náufrago de amor, e por amor morrendo.


Não terá fim esse amor de velho louco,

esquecido farol de uma ilha solitária,

onde se morre todo dia, em luta diária,

cada dia de mar perdido, sangrando um pouco.


Não será muito sentir no peito a maré,

pulsando algas, o sal me corroendo a fé,

se adormeço no profundo sono dos mortos.


E reviver o passado desse amor vivo, 

na alva rede do mar, do amor que me privo,

é como estar vivo em cemitério de portos.

38. NOTURNO

Espero que no dia amanheça 

a ternura,

E que bem rápido eu esqueça

a tortura


De abrir os olhos devagar

qual cego,

em noite escura do pensar

que nego





37. FUGITIVOS

Tivemos que suportar a dureza das pedras nos pés,

subimos encostas lisas, vencemos o medo paralisante,

repousamos vitoriosamente no cume onde pousam os loucos.

Os corpos feridos, ouvimos o rugir de negras panteras,

o líquido voo dos carcarás famintos sobre a terra.


Onde vamos vivem os seres que regurgitam flores,

no interior das florestas, cobertas de espessas brumas,

e o eco dos gritos apodrecem nos ouvidos de bugios moucos.

Haveremos de suportar ali o silêncio de ferro, 

o peso do ar gelado nos pulmões, enquanto os rios choram.














domingo, 4 de junho de 2017

36. AMOR DE PERDIÇÃO

Teria flores de esgar para enfeitar teu seio

de potras ofegantes em brusca subida,

laço de corda, o flanar de asas ao meio

derramando sóis na cama enrijecida.


Dentro desse ar puro, na escuridão do céu.

Seria gume, cortando nuvens de centeio

e chiar de morcegos reclusos no mel

onde morre a alma partida ao meio.


Beijos para calar a boca de vinho doce,

sargaços de fria maré, o tempo me fosse

rodopio de folhas na louca ventania.


E o pulsar de corpos na fímbria do dia

esmaece o tempo do meu feliz degredo

onde berro no palácio febril  do medo.