quinta-feira, 29 de junho de 2017

48. CEMITÉRIO DOS ANJOS

Eu me estranho ante o espelho quebrado,

mil faces retratam um espinheiro

do tucum; e da urtiga meu braseiro,

onde sinto o corpo em asas mutilado.


Insone, espero a luz do candelabro,

que orienta meu caminho indecifrável,

um tanto sangue, um tanto rosa afável,

na pedra rija do aluvião que lavro.


Eu me estranho diante do mundo triste,

onde pássaros morrem nas vidraças

e o homem fatigado não resiste.


Prefiro o ginete azul das desgraças,

o esgar da boca, o cutelo em riste,

o insano tropel das alvas carcaças.

domingo, 25 de junho de 2017

47. BERLIM

A outra metade está no secreto

interior de calda alma desterrada.

Entre nós há um muro de concreto

que faz do medo a língua mais falada.


Nascemos aborto, inconcluso feto,

contração da carne chorando o nada,

nu menino, sem mãe, sem pão e sem teto,

cavando a terra, órfão de foice e enxada.


A  face roída por um inseto

é o ventre aberto da mulher cansada,

o espasmo cru do coração inquieto.


Varíola dos anos, rede rasgada

onde o filho do filho fabrica o neto

e meu ciclo se fecha sem estrada.


sábado, 24 de junho de 2017

46. BUNKER

Alguém pode querer gritar ao lado

de mim, ferido e sem ninguém.

Que alguém pode assim ferir-se também

ao lado seu mais do que ao meu aberto lado.


Pois que chorar possa, não importa quem,

sob o seu flanco ferido e manchado.

Chore agora em soluço abafado,

ou alto grite, por por algo ou por alguém.


Não choro eu. A minha dor aqui não cabe

e ninguém da ferida minha sabe,

mais que aberta em corte mais que profundo.


Porquanto posso, mesmo que ferido,

esquecer da ferida, adormecido,

homorrágico a tudo, a mim e ao mundo.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

45. BACCHANALE

Morrer só, contando a moeda-miséria

tudo o que sobrará no final da festa,

como o que falta sem saber que resta.

Morrer é só, infecção diária, bactéria.


Deitar sujo em chão de mijos e bostas,

sentindo no pulso a obstruída artéria,

amante carnal da noite venérea,

corpo decepado em pútridas postas.


E resta no meu fétido final

solitário telhado de pedra e cal

onde meus ossos se dissolverão.


Morrerei só, como o jaguar final,

derradeiro da espécime fatal

de morte ferido em agreste sertão.


44. DEPRESSÃO

A dor que enfrento jamais foi pequena,

a morte que desafio desarmado

de mim, onde corre o tempo alvejado

por mil balas da minha surda pena.


Agora tudo é pouco nesta arena

de leões famintos e ser devorado

cristão ou mesmo ser crucificado

pouco importa à vida sem paz terrena.


Se eu morro sem Deus ninguém dirá

tampouco: uma esquerda hora que virá

em algum dos meus dias que não espero.


Por enquanto aqui vivo sem saber

até quando sem Deus eu vou viver

na estrada louca desse desespero.



43.CAIS

Esperar o mar não é como uma espera

qualquer. O cais se avizinha no instante

azul, o barco imita o choro infante

onde em pó a luz do cais se desfizera.


O mar é tudo. Ânsia que desespera

alma presa no porto mais distante,

sol de gaivotas tristes no semblante,

mortalha da morte que não nos dera.


Espero. Ainda que à hora de partir

ninguém que espere por mim possa vir

em aceno de madrugada irreal.


Pois basta que eu não sinta o coração 

no peito oculto ao descanso da mão:

o mar lava a alma na insânia do sal.




42. COMBOIOS

Amontoados sob o frio dos arroios

eles nunca souberam madrugadas

em sonhos de ferrugens e comboios

os guerrilheiros de armas alugadas.


E muitos daqueles que se perderam

trigo nos campos estivais de outrora

foram soldados nus por quem morreram

sóis em fogo: por esses ninguém chora.


Ficando a marca em cada um de nós

o clamor surdo de um silêncio atroz

estrela cadente em confins da terra.


Ficou essa marca em cada um de nós

grito mudo na multidão sem voz

paz da pátria falsa no ardor da guerra.





domingo, 18 de junho de 2017

41. CAVALEIRO FERIDO

Perdoa, se matei o teu ginete alado,

na exaustão da rocha, no ferir da espora

cega, pestilento cão anunciando o caipora.

Perdoa rápido, que passarei cansado.


Não olha para a serra, no cume adensado

onde vou desaparecer ferido por agora,

entoando os cânticos da derradeira hora.

Ouve apenas, com o coração trespassado.


Se com o tempo minha presença de vapor

diluir-se nas manhãs de luz, fímbria e ardor,

lembra o canto, sina do cavaleiro morto


que deitou tantas árvores pelas raízes,

soçobrou paineiras, afugentou perdizes,

e assim tombou flechado por um anjo torto.






40. VERÃO

Morre-se em decúbito, e sangrando o dorso,

onde o punho faz tinir chibatadas puídas,

sal branco por sobre a roxidão das feridas,

para calar o choro do meu navio corso.


Morre-se sem chão, com o lacerado torso

exposto ao bico das aves espavoridas;

sem razão morro, sob árvores parricidas

que me deitam no corpo folhas de remorso.


Viúvo de mim mesmo, espero rubras flores 

que adornam jazigos e lágrimas sem cores,

curvas pontilhadas de cruzes nos caminhos.


Contarei o tempo no silício das chapadas 

que incendeiam troncos e víboras tresmalhadas

quebram no meio a espiral dos redemoinhos.



quarta-feira, 14 de junho de 2017

39. SONETO DA DESPEDIDA

Foi brusco o nosso amor, e não me arrependo,

vigiei lamparinas, noites quentes a fio,

afoguei-me, incendiando meu navio,

náufrago de amor, e por amor morrendo.


Não terá fim esse amor de velho louco,

esquecido farol de uma ilha solitária,

onde se morre todo dia, em luta diária,

cada dia de mar perdido, sangrando um pouco.


Não será muito sentir no peito a maré,

pulsando algas, o sal me corroendo a fé,

se adormeço no profundo sono dos mortos.


E reviver o passado desse amor vivo, 

na alva rede do mar, do amor que me privo,

é como estar vivo em cemitério de portos.

38. NOTURNO

Espero que no dia amanheça 

a ternura,

E que bem rápido eu esqueça

a tortura


De abrir os olhos devagar

qual cego,

em noite escura do pensar

que nego





37. FUGITIVOS

Tivemos que suportar a dureza das pedras nos pés,

subimos encostas lisas, vencemos o medo paralisante,

repousamos vitoriosamente no cume onde pousam os loucos.

Os corpos feridos, ouvimos o rugir de negras panteras,

o líquido voo dos carcarás famintos sobre a terra.


Onde vamos vivem os seres que regurgitam flores,

no interior das florestas, cobertas de espessas brumas,

e o eco dos gritos apodrecem nos ouvidos de bugios moucos.

Haveremos de suportar ali o silêncio de ferro, 

o peso do ar gelado nos pulmões, enquanto os rios choram.














domingo, 4 de junho de 2017

36. AMOR DE PERDIÇÃO

Teria flores de esgar para enfeitar teu seio

de potras ofegantes em brusca subida,

laço de corda, o flanar de asas ao meio

derramando sóis na cama enrijecida.


Dentro desse ar puro, na escuridão do céu.

Seria gume, cortando nuvens de centeio

e chiar de morcegos reclusos no mel

onde morre a alma partida ao meio.


Beijos para calar a boca de vinho doce,

sargaços de fria maré, o tempo me fosse

rodopio de folhas na louca ventania.


E o pulsar de corpos na fímbria do dia

esmaece o tempo do meu feliz degredo

onde berro no palácio febril  do medo.

35. A ESPERANÇA NO ÉDEN

O mundo das silhuetas bruxuleantes

ruirá,  um dia de vento, tosco e frouxo,

num grande estalo de árvore tombando.

Ouvirei, pois, num relance de coxo, 

- chama trepidante de lamparinas -

o mugido azul do novilho mocho

na parede bolorenta da insônia

onde lírios morrem em desabrocho.

34. SOBRE A NECESSIDADE DE OUVIR

Existe uma coisa a ser pensada

no imenso novelo da vida.

Um lugar onde não haja o barulho

de buzinas e ronco de motores...

Um lugar onde os telejornais não alcancem,

com as últimas notícias de um mundo violento

e sem sentido.

Precisamos considerar que o vácuo

dos últimos acontecimentos

inscrevem na mesma sala escura

o mais recente ataque terrorista

e a surpreendente prisão do mais novo 

e insuspeito corrupto.

Não seria mais uma espécie de fuga,

pois se foge quando se deixa algo para trás.

Seria apenas outra forma de encarar os sons,

diluídos em gotas translúcidas de orvalho.

Seria uma forma de ouvir as vibrações

que emanam das afinadas cordas vocais

ocultas nas densas florestas.

Seria apenas uma forma de mimetismo

onde nossos pés se transformassem em raízes

e em nossos ombros repousassem os ninhos.