sexta-feira, 20 de setembro de 2019

85. ÊXTASE


Mesmo que a realidade assuma forma razoável,

simulando o absurdo no seu hálito de morte,

eu me tenho vivo, porém de abraço inefável,

sem que nunca tenha me preocupado com a sorte.


Mesmo que eu, só comigo, me sinta um ser deplorável,

na minha loucura, eu me sinto estranho, porém forte,

desafiando a razão e o destino inexorável,

de morrer hemorrágico, mas sem o mínimo corte.


Quero andar pelas ruas desse extermínio provável,

onde putas me chamem pelo nome miserável,

que do engenho herdei na minha diáspora consorte.



Se desposei, descasei ou reneguei, nada há que importe,

senão a vida, os passos guiados pela estrela do norte,

e na ânsia profunda a sede de justiça implacável.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

84. MENINO DO INTERIOR

Quem um dia não deitou no chão afinal
para contar nuvens e as estrelas cadentes,
o disco da lua na láctea via transcendente, 
um cheiro de castanha assada no quintal?

Quem nunca viu o pau d'arco florir no verão,
o oco dos troncos cheios de favos de mel, 
juçareiras brotando alto, quase no céu,
e grandes buritizais em cachos no grotão?

Quem, menino, do lobisomem nunca ouviu
estórias, mas que, mesmo nunca, ninguém viu,
e acordou com medo dos latidos na rua?

Quem um dia não voltou para casa correndo,
o peito arfando, de susto quase morrendo,
quando ouviu espantado o choro da mãe da lua?

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

83. POÇO AZUL

Sendo forjado nas armas de ferro e aço
foi com elas que abri meu tristonho caminho,
rompendo trincheiras de sangue e de espinho,
fazendo chover rimas de sol e mormaço.

Tive sonhos de cavaleiro de armadura
de bronze, de punho em riste, o gume da espada,
cortando raso o esteio da casa incendiada,
mortos chorando por dentro da sepultura. 

Rugir de serras rompendo a barra do dia,
meu ginete empina, o brilho da prataria
cega, meu gibão de couro protege o peito.

No delírio do granito, escorre no leito
água e espuma, gotículas no ar rarefeito,
lança quebrada, o poema no bico da harpia.

terça-feira, 30 de julho de 2019

82. CANGACEIRO

Quando eu nasci o mundo ouviu um grande estalo,
um vento xucro soprou no meu nascimento,
a terra gemeu e fez rachar o cimento,
e ressoou bem distante um canto de galo.

Alegre o meu povo cantava uma ciranda,
Pato, peru e capote eram a comida,
Pitu, catuaba e jurubeba eram bebida,
o forró torando e o mundo rachando em banda.

Quando eu cheguei, sei, muitos torciam a boca,
eu sorria no colo de uma velha louca
com a minha boca cheia de mingau quente.

Por certo eles me sabiam lugar-tenente,
então vindo ao mundo para assombrar gente,
meu pirão primeiro, se a farinha é pouca.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

81. DE REPENTE A MORTE

(em memória de Zé Enedina, liderança rural de Araioses, assassinada em 19 de julho de 2014)

Ninguém se importa quando morre mais um Zé, 
ainda mais o Zé que vigia o carnaubal,
envelhecido no cerrado, andando a pé,
onde foi morto de faca como um animal.

Ninguém pôde ouvir os gritos daquele Zé,
a não ser o rio, com suas águas de cristal.
E morto ficou, estendido, na sua fé,
o Enedina, à sombra da palmeira letal.

Mal sabia o algoz que matando desse jeito,
como testemunha das facadas no peito,
a floresta amaldiçoaria o assassino.

E para cada curva do rio Santa Rosa 
há uma lembrança destemida e poderosa
desse guardião que morreu como um peregrino.




80. POETAS SÃO COMO MENDIGOS

A imagem mais próxima dos poetas não é a dos burgueses,
limpos, bem vestidos, ao redor de comidas e bebidas finas.

Ninguém faz poema satisfeito consigo mesmo, cheio de plenitude.

Os poemas não vêm do céu, como querem os crédulos. Não existem musas, o poema não nasce de uma inspiração da alma.

Poetas são como mendigos de rua, maltrapilhos e famintos. Seus amigos são os cães abandonados das praças e seus quitutes estão no lixo dos mercados.

Não se faz poemas para acalentar, para adoçar os dias, para aliviar as dores. O poema não serve para nada, é inútil, por isso sobrevive.

O poema está nas valas, nos lixões, ao lado de ratos e urubus.

Cada palavra do poema representa uma lesão, um espinho, uma navalha.

Lavrar o poema é duro, áspero, como lavrar a terra. No chão das flores residem os vermes e a decomposição. 

Poetas lapidam versos com as mãos sujas.

quarta-feira, 10 de julho de 2019

79. FIM DE LINHA

A primeira vez que percebi a diferença 
foi duro para mim, os olhos resvalando
por sobre a mesa de pau d'arco, a dor imensa
no paladar, a tua saliva me amargando.

Um rato soturno roía algo na dispensa,
dava para ouvir, tal o silêncio cortando
nossa vida em comum, embora a crença
na cura ainda houvesse, o amor desmoronando.

Não quero mais nada, senhora do meu pranto,
porque tudo na vida um dia perde o encanto,
era tudo o que eu sabia, mas duvidava.

Primeira vez que percebi que algo faltava,
era um dia de sol, um pardal cantarolava,
e eu abafei o choro que nunca houve, no entanto.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

78. PAIXÃO

Coisa que se faz por teima, não por convicção,
é amar quem não se pode amar, por simples medo; 
correr atrás de boi bravo, faiscando o lajedo,
quem nunca vestiu perneira, chapéu e gibão.

O que se faz tirando lasca do rochedo,
o cavalo selado resvalando o chão,
o guarda-peito protegendo o coração,
é o sonho de viver, mesmo morrendo cedo.

Pois eu me vi perdido no mato seco, 
o sangue escorrendo na cara, de pau e espinho,
as moitas de unha-de-gato estreitando o beco.

De tanto correr fazendo redemoinho,
do tropel do meu coração se ouvindo o eco,
estafei a montaria para morrer sozinho.


quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

77. PRESA

Na noite que eu a vi uma coan cantava triste,
pros lados da serra encoberta por neblina,
e eu tive a certeza dura que o amor existe,
faísca de brasa na asa vulturina.

Na noite que eu a vi não havia mais lua.
Andava tateando pelos vãos do caminho,
tal como o jaguar, farejando a carne crua,
perambula pela mata, esquivo e sozinho. 

Melhor sorte o Criador da Terra não me dera,
por avistar de relance os olhos da fera
que até hoje todas as noites me consome.

E não ter visto aquela visão eu quisera,
mesmo que ao preço de saciar sua fome,
melhor seria nem sequer saber seu nome.


segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

76. TRUPIADA

Eu fui o poeta que se perdeu no rio torto,
onde um papagaio amarelo bebe água
e a onça parda come um bicho morto,
na serra do urubu que a ravina deságua.

Eu derramei meu canto de flores sem horto,
as minhas lágrimas irrigando tanta mágoa,
sendo elas a tampa do meu caixão sem tábua,
a sina crua de um velório sem aborto.

Vivi cegando para as cobras do sertão
que também se escondem no orvalho do capim,
adiantei meu passo coxo na contramão.

Ouvi o tinir do ferro em talhe de facão,
vi a espora ferindo de lado o meu rim
e rompi a cruz de espinhos com meu alazão.

75. EU PEDI

Eu quis o mundo menos complicado,
o tempo claudicando e sem promessa,
todas as coisas fluindo sem pressa,
como o céu azul de um dia abençoado.

Colhi flores ao longo dos caminhos,
abracei amigos que foram mais cedo,
perdi guerras, porém lutei sem medo,
tal como as aves refazem seus ninhos.

Para esquecer do tempo que me devora
nadei nas águas assassinas do rio,
esperando que chegasse a minha hora.

Escalei a árvore do desvario,
candelabro de ferro que apavora 
nas noites chuvosas do meu vazio.

sábado, 12 de janeiro de 2019

74. LEMBRANÇA

Brotavam flores da terra crua do sertão,
no horizonte era  tudo espinho, áspero e duro,
tardava o passo o croatá, espalhado pelo chão,
e de noite estrelas pontilhavam no céu escuro.

Eu ouvia a cigarra e a coan no pau seco
chamando a chuva que não tardava e caía,
tudo ficava verde, o igapó se refazia,
o berro do bugio contente fazia eco.

O peixe na fogueira, a nuvem de fumaça,
meu pai na rede, não tinha medo de nada,
dormia ao lado de uma espingarda de caça.

Memória do infante que sempre chora triste
com o rosto frio colado na vidraça
a lembrança de um tempo que não mais existe.