sexta-feira, 31 de março de 2017

22. MEDO


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Aqui, onde se ouve o medonho grito da raposa,

a escuridão lava o céu de nimbos conformados

e as estrelas são vaga-lumes pendurados

no chão invertido de quem na árvore repousa.


Aqui, onde a lua brilha o dorso castanho do jaguar

e se ouve o empalmar de folhas no alto das copas,

ecoa na lage o tinir dos cascos azuis das tropas

de anjos de gibão, alados, de armaduras em par.


E a cada rumor da brisa de prata, um sussurro

de centauro de olho esverdeado e ferido,

como a bruma das ninfas, o clamor puro do urro.


Aqui, onde meu pranto é reza senil, e ainda espero

vencer o medo, coisas estranhas e sem sentido

acontecem no porão escuro do desespero.

21. VELHICE

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Eu nasci numa casa de tristonhos corredores


onde o eco da voz me fazia sentir mais sozinho;

sem jogos de criança, no beiral, havia um ninho,

e, na frente da casa alada, jardins sem flores.


E aprendi brincar comigo mesmo, sem muitas dores,

falando a língua do silêncio na taça de vinho,

com olhos de fogo no escuro, chorando baixinho,

e o lampejo de morte nesse chão de horrores.


Não lembro do desespero febril das andorinhas

em trajetórias sem sentido, no céu sujo de cobre,

e meu pensamento camuflado de penas órfãs.


Não guardei lembranças de tantas mortes vizinhas

no miasma de ossos dentro do baú, sujo e pobre,

que herdo, mudo, no inventário de palavras anciãs.

domingo, 26 de março de 2017

20. PROFANAÇÃO


Longo murmurar dos vinhedos causticantes

assombram as mulas do destino cansadas


e roubam o sono de almas penadas


no estio noturno dos bichos claudicantes.



Dentes de cristal fazem tremer arvoredos,


Lua de prata ilumina cemitérios de meninos,


uivos órfãos fazem badalar os sinos


e trombetas ocas soam tristes arremedos.



Vou chegando a esmo da montaria cega,


varando a escuridão rubra dos girassóis mortos,


exalando o etílico bafo de mil sentinelas.



Chegarei recitando banidos versos de poetas alados,


para o espanto soturno de milhões de morcegos peregrinos,


ao tempo em que adormeço ao coro dos anjos de bronze.







19. CÉU IMPUNE

Não vamos falar de coisas tristes na hora de partir,

apenas olhe como é medonho o silêncio que sai de mim,

lembrando a chuva nos arroios e o tatalar de asas no vácuo,

a minha fala presa em alguma raiz no fundo.


Não me diga nada, se puder...

Já me bastam os prisioneiros do meu cárcere imundo,

clamando por mim com as mãos gangrenadas,

lembrando a dor de não sentir absolutamente nada.


Melhor seria baixar os olhos,

antes que o medo se aproxime, com a boca manietada,

e o lampião exploda a verdade no quarto escuro.


Não falaremos de coisas tristes hoje,

sem força para olhar no alto da tresloucada via láctea,

apenas sentiremos a presença das estrelas no céu de labirinto

e o rugir dos ventos na longínqua fúria do jaguar.

quinta-feira, 16 de março de 2017

18. GURUPIÚNA




Essa espera de rio na curva das manhãs
carrega nos ombros o sino da catedral da fome.
Um soluço de peixe no piscar de olhos
divide as horas mornas dos mosquitos.

Vou embora pisando nos pés doloridos,
lamentando a hecatombe das unhas pretas,
cantando baixinho a toada fúnebre dos tucanos.

O rio me observa grunhindo ao largo,
na estreita passagem das correntezas impuras,
onde árvores de raízes podres tombam.

Essa espera de rio, me faz pensar na estação do bronze
crucificado no céu e em nuvens de borboletas amarelas
ao redor do meu corpo suado.

17. ÓDIO JUSTO



Não peça perdão pelo ódio justo,
abelhas voltarão sobre o destino
onde cães feridos deitam sono.

Desfia o grito e a lâmina fria
na garganta apertada do choro de vime.
Solta a rédea e salta
sobre a cerca de amputadas pernas
subindo o morro de assombrações azuis.

Um tiro surdo que se aproxima
trazendo o sal do sangue na língua.
O terço geriatra, a canção perdida no tempo,
a voz estilhaçada da fome sobre a mesa.

No fim dos dias não haverá perdão nenhum,
apenas a seiva do tronco cortado,
choro de criança perdido na rodoviária,
murmúrio de rios na madrugada.

Levanta tua voz e segue, com o lado aberto,
rastejando a vitória das tochas no deserto,
até que os dobres do sino derrubem o cobre do céu.

16. LEMBRA?





Tanto mais dói a fome  a espera se alonga,
vazando formigas pelos cotovelos,
crescendo urtigas nos quintais abandonados,
onde farejam gatos no cio.

Tanto mais eu desejo o corpo simulacro,
fatiado em pedaços de lenho e pedra,
ouço cantar a voz do tempo
no corredor vazio da esperança decepada.

Lembra da mão entrelaçada mentindo
e milhões de cobras parindo no rio de lama,
o sol resvalando sobre árvores inconclusas.

Lembra que eu fui menino com medo
de ser devorado pela morte das araucárias
e fugi para dentro da noite sem janelas.

sexta-feira, 3 de março de 2017

15. SENTINELA PARA EUSÉBIO KA'APOR




Eles rabiscarão o caderno da morte,
enrijecida sobre a mesa de jatobá,
mas não verão a mãe chorando ao lado.

Pisarão nas flores de pequi no chão úmido,
mas não verão a criança de arco retesando os passos
nas veredas tortas de milhões de árvores incendiadas.

Cuspirão sinceros sentimentos de perda
na tristonha face dos metais pendurada
pelo clangor mentiroso dos sinos de bronze.

Contemplarão a ferida aberta,
como atestado de anjo que bafeja
o grito perdido no vendaval da cruzes.

E passarão ao largo do corpo translúcido,
com a indiferença costumeira dos pássaros,
que também morrerão na próxima estação.

14. TEMPO DO MILHO


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O tempo do milho chega encharcado,
disputando espaço com ervas daninhas,
enfileirando penachos dourados,
que depois escurecem ressequidos.

É o tempo da relva verde e dos campos cheios,
dos cofos repletos de peixes pretos,
das armadilhas de nomes estranhos,
landroá, choque, jiqui ...

Os meninos correm empanturrados
de manga
de pequi
de bacuri
de jaca
                             com farinha



As mutucas insistentes
as muriçocas estridentes
os mosquitos renitentes
os maruins persistentes

Povoam a floresta
invadem as casas
forçam os bichos a adentrar na água
para esfriar o couro fervendo de picadas.

Chove no tempo do milho.
Uma chuva de trégua miúda,
tamborilando no telhado,
encrespando o frio nas redes noturnas.

Os papagaios e os periquitos revoam ao longe,
esperando a hora de atacar o milho.

Milho verde, milho maduro,
milho cozido, milho assado,
canjica e pamonha...