domingo, 30 de abril de 2017

33. UMA CANÇÃO PARA DEUS

Me deixa seguir as luzes 

que brilham longe na floresta,

orvalho pingando na folha, pio da coruja.

Quero beber gotas de pensamento, 

fluindo para as nuvens.

Faça de mim o silêncio puro, o ruflar de asas,

murmúrio de água na pedra...

Me permita correr com os meteoros

que cortam o céu de fogo azul.

Quero sentir a estrela dos ventos,

e me queimar na face quando os ipês

estiverem tecendo o tapete amarelo no chão.

32. HALOPERIDOL



Um dia tudo apaga.


E nada vai importar ao redor, apenas estranhos ruídos no quarto.

Fantasmas escondidos em algum porão da mente,

correntes que se arrastam sozinhas no corredor.



As coisas estão se apagando,

um menino roto está limpando a janela do tempo,

e lá fora podemos ver a chuva, respingando a vidraça.


Queria poder demorar mais a infância

ver os pássaros antes que a noite chegue,

comentar o último gibi das bancas, 

mas você apagou antes das cortinas baixarem.


Queria tua mão, mas agora é tarde,

porque ela se fechou definitivamente,

incapaz de sentir o calor da ternura, a firmeza do gesto.


Na mesa, não posso mais te encarar a mesma face,

não posso mais ver o riso aéreo pedindo socorro,

refletido na louça do prato vazio, sem espanto,

e eu pensando como poderia ser diferente.





terça-feira, 25 de abril de 2017

31. ANCIÃ NA JANELA

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Haverá alguém na janela colonial,

emoldurada na velhice da arquitetura,

ouvindo os bem-te-vis amanhecidos.

Haverá luz nos seus olhos de muitas rugas,

lembranças de um império de riso e luz,

na canção fantasmagórica de uma escápula.

A canícula exposta na calçada, jasmins

no ridículo alpendre, onde pousa o pássaro.

Há de haver um lugar no horizonte incendiado,

em que a paz repousará como um gato

nos braços mornos do tempo.


domingo, 23 de abril de 2017

30. QUANDO TODOS DORMEM

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Enquanto todos ressonam
eu vigio o sono do meu herói.

Cada minuto que eu me despeço,
é esperança de mais um dia,
o rebento de uma planta.

Ele se agita, embalado por drogas
que percorrem as veias.

Conversando sobre uma juventude distante,
cada espanto se desfaz nas águas,
e não há delírio sem a resposta da ternura,
onde o fio dos dois destino se atam.

29. QUARTO ESCURO


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Sei que uma hora as luzes apagarão
e eu terei que enfrentar meus monstros.

Não terei mais a mão do Hércules,
nem seus olhos sobre meus passos vacilantes.

Ele seguirá o caminho das aves, cortando o céu,
eu ficarei no meu quarto sem janelas,
na agonia dos vivos que respiram lágrimas.

28. SOLIDÃO DE MENINO


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Sei que estou prestes a perder
o braço que me ergueu Sebastião.

Foi quem me acudiu em noites insones
e me impôs o rumo
no mar revolto e na floresta escura.

A cada dia ele apaga uma luz
de seu corredor de ventania
e nos seus olhos vejo correr
um menino de sal,
entre besouros do jardim.

Depois que eu recebi a flecha das suas mãos,
aprendi a tecer feridas rosas, 
ouvindo bugios enlouquecidos.

E me fiz homem sob os seus olhos 
de fera vigilante,
dono da palavra emudecida, do gesto frio.

Ninguém mais foi capaz.

27. CORRENTES



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Eu sei que estou atado a ele
na corrente do passado.

Posso ler na sua face 
a minha futura demência,
o meu encanto pavoroso
por silêncio e labirinto.

Ele engasga e treme, 
como um pardal no ninho.

Estamos presos no mesmo poste de linchamento,
ouvindo rezas, ferrolhos de janelas, escápulas rangendo...

Cada palavra torta soa como pedra lançada ao poço
- dentro de mim.





26. NOITE


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Temo por mim só de noite,
porque sei que a falta será um  balaço;
O aperto da cobra no pulmão,
o estertor no fundo das águas.

À noite lembro dele com mais força,
me conduzindo pela mão
nos caminhos de altíssimas árvores.

Eu fui menos do que ele,
não vi de perto os gigantes assassinos,
nem enfrentei os cães que dilaceram
úlceras carnes.

À noite ele balbucia coisas sem sentido
para os outros,
mas eu entendo a língua do sopro,
a gagueira zonza dos xamãs de pedra.

Cada palavra balbuciada de saliva e delírio
me faz calar asas sobre o abismo,
na torção geriátrica da boca
vaticinando o fim.

25. HOSPITAL

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Lugar onde a morte ronda 
agachada e sorrateira,
como um jaguar faminto.

Ouve-se na madrugada insone
o tropel de aladas bestas.
O balbucio dos terços 
sem sentido,
entre os dedos.

E a incontinência urinária dos idosos
que pressentem anjos cegos
atrás das portas.

24. TESTAMENTO




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Quando eu não tiver mais forças,
Quero ser a lembrança dos ipês floridos,
A doce trama das copas coloridas de amarelo,
Ornamentando uma parte do céu lavado,
Na agitação das abelhas
E na canção quase inaudível das águas.


sábado, 1 de abril de 2017

23. CAMINHADA

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De onde eu venho as árvores são de ferro,

as estrelas são tochas de chumbo iluminando o céu,

e a navalha das chuvas em postas abrem o corpo.


De onde eu venho o poema inflama ínguas,

os versos queimam o dorso lenhoso dos dragões

e todas as frutas são da cor do bronze.



Passei ao largo com os andrajos em fogo

o aríete deitando abaixo portões e sarcófagos,


iluminado o terçado de sangue e o diamante,

topázio dos olhos, bruma dos castelos.



De onde eu venho somente os cães falam,

regurgitam carne podre, dançam a ciranda das tetas,

e em nome do pai, enterram-se ossos sob a cruz.