quinta-feira, 14 de abril de 2016
segunda-feira, 11 de abril de 2016
domingo, 10 de abril de 2016
1. FINADOS
POEMAS DO PRIMEIRO LIVRO
Em memória de Celso Sampaio Gomes
Ninguém
soube o porquê da partida repentina,
não houve tempo sequer para a despedida;
Simplesmente desligaram você da vida,
como, de noite, se apaga uma lamparina.
Eu tive que engolir meu choro numa rede,
ouvindo ao longe o tristonho canto da acauã.
Na memória, badalando a esperança vã,
o tic-tac alto do relógio na parede.
Fui contando as horas para o raiar do dia,
as abelhas anunciando a chuva espectral,
a surda ventania da ruptura final.
Hoje ainda relembro os momentos de alegria,
um luto frio que nem chuva torrencial
lava na parede da memória
vazia.
2. DE MÃOS DADAS
Não
se preocupe, eu te escuto.
Não
vou embora.
Não
vou desistir de você.
Tá
tudo escuro lá fora,
somente
os gatos no cio rompem o silêncio.
A
rua está deserta, exceto por alguém atrasado,
ansioso
por chegar em casa
No
alto do bairro, nós vemos os telhados.
O
céu denso, nuvens grossas tapando a luz da lua.
Tua
mão de parkinson ainda me abençoam,
mas
já foi firme como aço,
desde
os tempos das grandes jornadas
nas
estradas e nos rios do sertão.
Você
me manda embora, toda noite.
Eu
espero, te olhando, em pé, com as chaves na mão.
Eu
demoro um pouco, conversando coisas sem sentido.
Faço
você rir, em lampejos de lucidez.
Tua
raiva não faz mais sentido, não é real.
Nossa
conversa é como uma pescaria paciente,
onde
se espera o momento em que volta o peixe da consciência.
E
depois do beijo e do abraço eu me vou.
Mas
voltarei, sempre. Não haverá partida.
3. SEGUNDO DIA DO SOFRIMENTO
Vamos juntos.
Teu olhar procurando pistas no meu rosto.
Tua mão sem forças para apertar a minha.
Tua voz silenciada pelo tubo.
Não importa mais novembro
e as sementes dormidas pela chuva temporã.
Aqui estou, firme. Como você sempre foi.
Olha para mim, eu te trago forças.
Lembra dos rios no sertão,
do sol vermelho no poente azul.
1. 4. QUE A DOR NÃO SEJA TÃO GRANDE QUANTO A VIDA
Há 51 anos, eu vim ao mundo nos teus braços,
no mesmo hospital onde hoje me desespero sem ar.
A cada passo na rampa que desce ao necrotério
sinto o mundo resvalando sob os pés.
Nos meus ouvidos ecoam gritos de pessoas entubadas
e nos corredores brancos desta casa de mortos
sinto o pulsar do meu coração de náufrago,
abraçado a ti, até o derradeiro instante.
Teu olhar sobre mim virou tatuagem:
é teu chamado para o "dom da fúria",
a luta feroz pela vida,
na derradeira hora da agonia.
5. NOITE NO HOSPITAL
Temo por mim só de noite,
porque sei que a falta será um balaço,
o aperto da cobra no pulmão,
o estertor no fundo das águas.
À noite lembro dele com mais força,
me conduzindo pela mão
nos caminhos de altíssimas árvores.
Eu fui menos do que ele,
não vi de perto os gigantes assassinos,
nem enfrentei os cães que dilaceram
ulceradas carnes.
À noite ele balbucia coisas
sem sentido para os outros,
mas eu entendo a língua do sopro,
a gagueira zonza dos xamãs de pedra.
Cada palavra balbuciada de saliva e delírio
me faz calar asas sobre o abismo,
na torção geriátrica da boca
vaticinando o meu fim covarde e solitário.
6. SOLIDÃO DE MENINO
o braço que me ergueu quase Sebastião.
Foi quem me acudiu em noites insones
e me impôs o rumo
no mar revolto e na floresta escura.
A cada dia ele apaga uma luz
de seu corredor de ventania
e nos seus olhos vejo correr
um menino de sal,
entre besouros do jardim.
Depois que eu recebi a flecha das suas mãos,
aprendi a tecer feridas rosas de Oxóssi,
ouvindo bugios enlouquecidos.
E me fiz homem sob os seus olhos
de fera vigilante,
dono da palavra emudecida, do gesto frio.
Ninguém mais foi capaz de me olhar por dentro.
4. 7. QUARTO
ESCURO
Sei que uma hora as luzes apagarão
e eu terei que enfrentar meus monstros.
Não terei mais a poderosa mão de herói,
nem seus olhos sobre meus passos vacilantes.
Ele seguirá o caminho das aves, cortando o céu,
eu ficarei no meu quarto sem janelas,
na agonia dos vivos que respiram lágrimas.
8. MISSA DO TRIGÉSIMO DIA
De passagem
pela casa, não há mais jardim,
apenas as
folhas no terraço de vento.
Toda a lembrança
dos meus passos de cimento
ecoa sem as
flores por dentro de mim.
Certo que
derramo ainda rios de pranto,
e que
replanto, pois, os vasos abandonados
pelo tempo:
trinta dias já são passados.
Quero a luz
que ficou no derradeiro espanto
de te perder
no aço da longa caminhada,
sem que
fossem as minhas súplicas ouvidas
nesse desespero da mão entrelaçada.
Queria mais
tempo, mais calor da chegada,
mais abraços
de reconciliações repetidas,
e o aceno
insistente no portão da entrada.
6. 9. MEMÓRIA DOS VENTOS
Dia após dia, dois anos se passaram,
e o tempo não foi suficiente para a cura.
Um látego de fogo me corta a carne
choro de menino no quarto escuro
e a cada memória da passagem, a locomotiva do adeus.
Tua voz ainda ecoa na triste mansão dos mortos
e eu me diluo no clarão das velas,
desde um pranto rumoroso como o dobrar dos sinos.
E não há prece possível, pensamentos que acalmem
os pássaros peregrinos do horizonte febril,
a ventania das candeias, o cheiro dos quintais
e a dor difusa da saudade impregnada nas paredes da casa.
7. 10. DOIS
ANOS DA PASSAGEM
Tão veloz que se passou, um frio do sertão.
Tudo passa, à revelia da
vontade e sorte.
Efêmera é a vida, e para
sempre é a morte,
pano branco e pranto
derramado ao chão.
Dois anos passaram, a fivela e o arpão,
ferida rubra aberta no profundo corte,
pontiaguda espora no cavalo da morte,
nas águas salobras que me escorrem da mão.
Ainda ouço o grito
empalmado na garganta
e o revoar de asas
sobre a casa sem jardim,
uma ladainha triste e
lágrima aos pés da Santa.
E tantas lembranças que
revivem o fim
inconcluso - o que me dói
tanto que espanta -,
são pedras, memórias,
campinas de cetim.
Menino das águas turvas dos rios,
sobrevivi nas entranhas da terra,
onde ecoa um canto de punhal no cio,
que me corta, me rasga e alto berra.
Tantas vezes vi chorando esse rio
no fundo de noites e madrugadas,
coroado de névoa branca, silencioso e frio,
que o tenho nas veias ensanguentadas.
As vezes que ouvi o rumor das águas
e me perdi nas veredas contíguas
seus murmúrios me guiaram na escuridão.
Tantas vezes que senti esse abraço cálido
que me refiz árvore presa ao chão.
é pura sintonia fina da alma na insônia delirante.
Ele anda comigo, qual vício da bebida no silêncio alcoolizante,
e me recolhe no espasmo do dia trêfego e mal iluminado.
Eu busco a letra, a forma dilatada de um sol incessante,
impassível à pronúncia, baú hermeticamente fechado
ao pavor de asas coloridas - um sentimento emboscado.
É o vagir do nascimento ruidoso de extinta língua pulsante!
Esse poema que repousa no prato, qual comida intragável,
é a mariposa insone das minhas noites de chuva tropical,
cerceando o ar escuro na luz de um mar improvável.
Ele vem, qual banzeiro, quando ensimesmado paro de navegar,
e fala, quando inexiste boca, na sombra do clarão do esgar,
vomitando flores vivas no repasto da hora capital.
Entre um rio e uma palavra existe um vão de coisas...
Elas correm no tempo como folhas tangidas nas correntezas,
algumas se perdem nas profundezas outras seguem caminho.
O rio e a palavra choram.
Quero esquecer da palavra...
Quero ser folha, furtiva e lânguida
nas corredeiras de um rio do sertão.
Um dia eu me encontro com ela,
prisioneira de um remanso qualquer,
onde se fundem raízes e folhas.
Entre um rio e uma palavra haverá a fusão das coisas,
caminhos de pedras ásperas, pios de aves incandescentes.
O rio e a palavra choram na minha presença.
órbita dos olhos. Fome e chão, chinelas rasgadas
de amassar a relva em tantas veredas tropeçadas.
Conto os dias no vai e vem da escápula irritante.
Eu quero no resplendor da aurora a infeliz mutante
Que desfila passos de mortes em mim hospedadas,
os Maíras sussurando vozes de almas penadas.
E vai correndo abraçada no seu pote de sangue.
Tropeço na lua vermelha enquanto rescalda no chão
álveas carcaças. Tinir de esporas, fivelas de ouro
adornam o Corpo Santo manietado no gibão.
Assim espero o fim, pendurada a veste de couro
do inválido cavaleiro, ensanguentado na mão
o terçado que abrirá o caminho do sol vindouro.
embalado por cigarras enlouquecidas de sol.
dos ipês ferindo o entardecer de sóis
me faz tinir na pedra a estiagem de rio sem foz
e corta o silêncio que afunda na angústia dolorosa
da espera vã onde o peixe engana a fome dos anzóis.
O canto da acauã entristece as tardes chuvosas
reboando longe a batida trilha do cão feroz,
por onde ilumino a fúria das águas invernosas.
É onde eu bebo em alarido mudo o fogo do alaúde
que toca esperanças virgens nas copas amputadas.
E montado no cavalo da senil juventude,
relembro onde me alcança a distância de um tiro
que estilhaço a voz contra o mormaço do chão
e ainda levanto o canto preso na palma da mão.
Acordar planando nas partículas suspensas
da chuva deixada pela noite cortada
por trovões e coriscos espectrais.
Enrolado no pano de sol estendido no chão,
madrugando na temperatura mais caída da manhã,
ouvindo o ressonar dos corpos,
a tristonha acauã, o agudo ladrido de cães
e o revoar de papagaios sobre os cocais,
o borbulhar dos peixes no remanso
e a explosão das águas nas cabeceiras,
os cardumes enlouquecidos
pelas chuvas torrenciais de fevereiro.
E assim revirar o tempo dos insetos famintos,
as lacerações das ervas daninhas,
o lamaçal das veredas tortas e sujas,
esquecendo as frutas coloridas no chão de relva
mais tarde devoradas por um tapete vermelho de quatis.
E não cronometrar as horas é como andar descalço
No fundo de areia alva dos rios.
11.CHUVA NA BAIXADA
Chuva significa terra fofa
esperando a semente
onde era incêndio e pedra.
Chuva traz a relva e os frutos coloridos
para a beira das estradas.
As folhas gotejantes expulsam brotos
no silêncio das noites molhadas.
Os caminhos sinuosos se estreitam
e apertam na fartura dos cipós e ramas.
Os currais enlameados
cheirando a estrume e urina,
guardam bezerros tristonhos de frio.
Nuvens de mutucas atacam
sedentas de sangue quente.
Homens escuros de chapéu
remam compassadamente e observam
o suspiro das curimatás
e o mimigado dos peixes graúdos.
Tempo de chuva
o dia transcorre em gotas
no intervalo das águas dormentes.
Queimamos o grito na garganta
para atravessar o rio
e falamos com a voz macia
enquanto as trevas ardem na fogueira.
12.SENTINELA PARA EUSÉBIO KA'APOR
Eles rabiscarão o caderno da morte,
enrijecida sobre a mesa de jatobá,
mas não verão a mãe terra chorando ao lado,
com os cabelos e unhas sujos de sangue.
Pisarão nas flores de pequi no chão úmido,
mas não verão a criança de arco retesando os passos
nas veredas tortas de milhões de árvores incendiadas.
Cuspirão sinceros sentimentos de perda
na tristonha face dos metais pendurada
pelo clangor mentiroso dos sinos de bronze.
Contemplarão a ferida aberta,
como atestado de anjo que bafeja
o grito perdido no vendaval da cruzes.
E passarão ao largo do corpo translúcido,
com a indiferença costumeira dos tratores,
que também morrerão na próxima estação.
13.LEMBRANÇA
Tanto mais dói a fome a espera se alonga,
vazando formigas pelos cotovelos,
crescendo urtigas nos quintais abandonados,
onde farejam gatos no cio.
Tanto mais eu desejo o corpo simulacro,
fatiado em pedaços de lenho e pedra,
ouço cantar a voz do tempo
no corredor vazio da esperança decepada.
Lembra da mão entrelaçada mentindo
e milhões de cobras parindo no rio de lama,
o sol resvalando sobre árvores inconclusas.
Lembra que eu fui menino com medo
de ser devorado pela morte das aroeiras
e fugi para dentro da noite sem janelas.
Não
peça perdão pelo ódio justo,
abelhas voltarão sobre o destino
onde cães feridos deitam o sono.
Desfia o grito e a lâmina fria
na garganta apertada do choro de vidro.
Solta
a rédea e salta
sobre a cerca de amputadas pernas
subindo o morro de assombrações azuis.
Um
tiro surdo que se aproxima
trazendo o sal do sangue na língua.
O terço geriatra, a canção perdida no tempo,
a voz estilhaçada da fome sobre a mesa.
No fim dos dias não haverá perdão nenhum,
apenas a seiva do tronco cortado,
choro de criança perdida na rodoviária,
murmúrio de rios na madrugada.
Levanta tua voz e segue, com o lado aberto,
rastejando a vitória das tochas no pântano florido,
até que os dobres do sino derrubem o cobre do céu.
15. ALDEIA GURUPIÚNA
Essa espera de rio na curva das manhãs
carrega nos ombros o sino da catedral da fome.
Um soluço de peixe no piscar de olhos
divide as horas mornas dos mosquitos.
Vou embora pisando macio sobre folhas,
lamentando o luar das onças pretas,
cantando baixinho a toada fúnebre dos tucanos.
O rio me observa grunhindo ao largo,
na estreita passagem das correntezas translúcidas,
onde árvores de raízes podres tombam.
das borboletas e no melancólico ronco dos bugios.
apenas olhe como é medonho o silêncio que sai de mim,
lembrando a chuva nos arroios e o tatalar de asas no vácuo,
a minha fala presa em alguma raiz no fundo.
Não me diga nada, se puder...
Já me bastam os prisioneiros do meu cárcere imundo,
clamando por mim com as mãos gangrenadas,
lembrando a dor de não sentir absolutamente nada.
Melhor seria baixar os olhos,
antes que o medo se aproxime, com a boca manietada,
e o lampião exploda a verdade no quarto escuro.
Não falaremos de coisas tristes hoje,
sem força para olhar no alto da tresloucada via láctea,
apenas sentiremos a presença das estrelas no céu de labirinto
e o rugir dos ventos na longínqua fúria do jaguar.
Eu nasci numa casa de tristonhos corredores
onde o eco da voz me fazia sentir mais sozinho.
Sem jogos de criança, no beiral havia um ninho,
e, na frente da casa alada, jardins sem flores.
E aprendi brincar comigo mesmo, sem muitas dores,
falando a língua do silêncio nos ventos de moinho,
com olhos de fogo no escuro, chorando baixinho,
e o lampejo de morte nesse chão de horrores.
Não lembro do desespero febril das andorinhas
em trajetórias sem sentido, no céu sujo de cobre,
e meu pensamento camuflado de penas órfãs.
Não guardei lembranças de tantas mortes vizinhas
no miasma de ossos dentro do baú, sujo e pobre,
que herdo, mudo, no inventário de palavras anciãs.
18. MEDO
Aqui, onde se ouve o medonho grito da raposa,
a escuridão lava o céu de nimbos conformados
e as estrelas são vaga-lumes pendurados
no chão invertido de quem na árvore repousa.
Aqui, onde a lua brilha o dorso castanho do jaguar
e se ouve o empalmar de folhas no alto das copas,
ecoa na lage o tinir dos cascos azuis das tropas
de anjos de gibão, alados, sem lábios para rezar.
E a cada rumor da brisa de prata, um sussurro
de centauro de olho esverdeado e ferido,
como a bruma das ninfas, o clamor puro do urro.
Aqui, onde meu pranto é reza senil, e ainda espero
vencer o medo, coisas estranhas e sem sentido
acontecem no porão escuro do desespero.
19. TROMBETAS
De onde eu venho as árvores são de ferro,
as estrelas são tochas de chumbo iluminando o céu,
e a navalha das chuvas em postas abrem o corpo.
De onde eu venho o poema inflama ínguas,
os versos queimam o dorso lenhoso dos dragões
e todas as frutas são da cor do bronze.
De lá eu chego portando andrajos de fogo,
o aríete deitando abaixo portões de sarcófagos,
o terçado de sangue iluminando o diamante,
o topázio dos olhos, a bruma dos castelos.
De onde eu venho somente os cães falam,
regurgitam sementes aladas, dançam a ciranda das tetas,
e em nome do pai, rezam o terço para o Deus da fome.
20. NOITE NO HOSPITAL
Temo por mim só de noite,
porque sei que a falta será um balaço,
o aperto da cobra no pulmão,
o estertor no fundo das águas.
À noite lembro dele com mais força,
me conduzindo pela mão
nos caminhos de altíssimas árvores.
Eu fui menos do que ele,
não vi de perto os gigantes assassinos,
nem enfrentei os cães que dilaceram
ulceradas carnes.
À noite ele balbucia coisas sem sentido
para os outros,
mas eu entendo a língua do sopro,
a gagueira zonza dos xamãs de pedra.
Cada palavra balbuciada de saliva e delírio
me faz calar asas sobre o abismo,
na torção geriátrica da boca
vaticinando o meu fim covarde e solitário.
Sei que
estou prestes a perder
o braço que me ergueu quase Sebastião.
Foi quem me acudiu em noites insones
e me impôs o rumo
no mar revolto e na floresta escura.
A cada dia ele apaga uma luz
de seu corredor de ventania
e nos seus olhos vejo correr
um menino de sal,
entre besouros do jardim.
Depois que eu recebi a flecha das suas mãos,
aprendi a tecer feridas rosas de Oxóssi,
ouvindo bugios enlouquecidos.
E me fiz homem sob os seus olhos
de fera vigilante,
dono da palavra emudecida, do gesto frio.
Ninguém mais foi capaz de me olhar por dentro.
22. QUARTO ESCURO
Sei que uma hora as luzes apagarão
e eu terei que enfrentar meus monstros.
Não terei mais a poderosa mão de herói,
nem seus olhos sobre meus passos vacilantes.
Ele seguirá o caminho das aves, cortando o céu,
eu ficarei no meu quarto sem janelas,
na agonia dos vivos que respiram lágrimas.
23. ANCIÃ NA JANELA
25. UMA CANÇÃO PARA DEUS
Me deixa seguir as luzes
que brilham longe na floresta,
orvalho pingando na folha, o pio da coruja.
Quero beber gotas de pensamento bons,
fluindo para as nuvens como sementes aladas.
Faça de mim o silêncio puro, o ruflar de asas,
murmúrio de água na pedra...
Quero sentir a estrela dos ventos,
a me queimar na face com o amarelo
resplendor do ipês.
Me permita correr com os meteoros
que cortam o céu de fogo azul.
no imenso novelo da vida.
Um lugar onde não haja o barulho
de buzinas e ronco de motores...
Um lugar onde os telejornais não alcancem,
com as últimas notícias de um mundo violento
e sem sentido.
Precisamos considerar que o vácuo
dos últimos acontecimentos
inscrevem na mesma sala escura
o mais recente ataque terrorista
e a surpreendente prisão do mais novo
e insuspeito corrupto.
Não seria mais uma espécie de fuga,
pois se foge quando se deixa algo para trás.
Seria apenas outra forma de encarar os sons,
diluídos em gotas translúcidas de orvalho.
Seria uma forma de ouvir as vibrações
que emanam das afinadas cordas vocais
ocultas nas densas florestas.
Seria apenas uma forma de mimetismo
onde nossos pés se transformassem em raízes
e em nossos ombros repousassem os ninhos.
ruirá, um dia de vento, tosco e frouxo,
num grande estalo de árvore tombando.
Ouvirei, pois, num relance de coxo,
- chama trepidante de lamparinas -
o mugido azul do novilho mocho
na parede bolorenta da insônia
onde lírios morrem em desabrocho.
laço de corda, o flanar de asas ao meio
derramando sóis na cama enrijecida.
Dentro desse ar puro, na escuridão do céu,
seria gume, cortando nuvens de centeio
e chiar de morcegos reclusos no mel
onde morre a alma partida ao meio.
Beijos para calar a boca de vinho doce,
sargaços de fria maré, o tempo me fosse
rodopio de folhas na louca ventania.
E o pulsar de corpos na fímbria do dia
esmaece o tempo do meu feliz degredo
onde berro no palácio febril do medo.
vigiei lamparinas, noites quentes a fio,
afoguei-me, incendiando meu navio,
náufrago de amor, e por amor morrendo.
Não terá fim esse amor de velho louco,
esquecido farol de uma ilha solitária,
onde se morre todo dia, em luta diária,
cada dia de mar perdido, sangrando um pouco.
Não será muito sentir no peito a maré,
pulsando algas, o sal me corroendo a fé,
se adormeço no profundo sono dos mortos.
E reviver o passado desse amor vivo,
na alva rede do mar, do amor que me privo,
é como estar vivo em cemitério de portos.
o cobertor de sol sobre a pele queimada,
branca pluma, e tinha o afago de brisa alada ,
imóvel remanso na água da tristeza.
No verão era a vertigem do redemoinho,
tapete de folhas, frutos caídos ao chão,
o círculo do sol vermelho do sertão,
garranchos e cipós de multiagudo espinho.
De noite, ouvia o touro negro no curral
e a acauã anunciar o mormaço repentino;
na rede, entrevia passarinhos no beiral.
Dia de vento, era o ruidoso estrondo de portas,
o zigue zague zunindo das folhas mortas
e o guincho dos macacos dentro do cocal.
Dia de receber notícia da morte:
E ficou no ar gelado o aceno em vão,