domingo, 10 de abril de 2016

2.



1. FINADOS



Hoje, a noite será povoada de vozes, e de imagens.
É no portão da casa que entrevejo minha pobreza
de solitária criança no mundo.
Meu grito nos corredores de um mundo hostil,
atravessa os rios e florestas do sertão.
Sem portas para bater, minha luz se dilui no escuro,
sem lamparina, sem fogueira, na cinza fria das chuvas.
Antes bastava subir no mais alto galho para respirar,
ver as coisas pequenas e simplesmente viver.
Hoje tateio cego no quarto lúgubre dos sonhos
à espera de um sinal, de notícias sobre o outro lado,
sobre o meu destino de cão consumido por varejeiras.
E simulo dois acenos, de mão dadas,
de uma porta entreaberta para a névoa do esquecimento
a que resisto, insone e ferido.

POEMAS DO PRIMEIRO LIVRO


1.  MARCHA FÚNEBRE

Em memória de Celso Sampaio Gomes

 

Ninguém soube o porquê da partida repentina,
não houve tempo sequer para a despedida;
Simplesmente desligaram você da vida,
como, de noite, se apaga uma lamparina.

Eu tive que engolir meu choro numa rede, 
ouvindo ao longe o tristonho canto da acauã.
Na memória, badalando a esperança vã,
o tic-tac alto do relógio na parede.

Fui contando as horas para o raiar do dia,
as abelhas anunciando a chuva espectral,
a surda ventania da ruptura final.

Hoje ainda relembro os momentos de alegria,
um luto frio que nem  chuva torrencial

     lava na parede da memória vazia.

 

 

 

 2.  DE MÃOS DADAS

Não se preocupe, eu te escuto.

Não vou embora.

Não vou desistir de você.

 

Tá tudo escuro lá fora,

somente os gatos no cio rompem o silêncio.

A rua está deserta, exceto por alguém atrasado,

ansioso por chegar em casa

 

No alto do bairro, nós vemos os telhados.

O céu denso, nuvens grossas tapando a luz da lua.

 

Tua mão de parkinson ainda me abençoam,

mas já foi firme como aço,

desde os tempos das grandes jornadas

nas estradas e nos rios do sertão.

 

Você me manda embora, toda noite.

Eu espero, te olhando, em pé, com as chaves na mão.

 

Eu demoro um pouco, conversando coisas sem sentido.

Faço você rir, em lampejos de lucidez.

 

Tua raiva não faz mais sentido, não é real.

Nossa conversa é como uma pescaria paciente,

onde se espera o momento em que volta o peixe da consciência.

 

E depois do beijo e do abraço eu me vou.

Mas voltarei, sempre. Não haverá partida.

 

 

 3.  SEGUNDO DIA DO SOFRIMENTO

 

Vamos juntos.

Teu olhar procurando pistas no meu rosto.

Tua mão sem forças para apertar a minha.

Tua voz silenciada pelo tubo.

Não importa mais novembro 

e as sementes dormidas pela chuva temporã.

 

Aqui estou, firme. Como você sempre foi.

Olha para mim, eu te trago forças.

Lembra dos rios no sertão,

do sol vermelho no poente azul.


1.  4. QUE A DOR NÃO SEJA TÃO GRANDE QUANTO A VIDA

 

Há 51 anos, eu vim ao mundo nos teus braços,

no mesmo hospital onde hoje me desespero sem ar.

A cada passo na rampa que desce ao necrotério

sinto o mundo resvalando sob os pés.

Nos meus ouvidos ecoam gritos de pessoas entubadas

e nos corredores brancos desta casa de mortos

sinto o pulsar do meu coração de náufrago,

abraçado a ti, até o derradeiro instante.

Teu olhar sobre mim virou tatuagem:

é teu chamado para o "dom da fúria",

a luta feroz pela vida,

na derradeira hora da agonia.


5.   NOITE NO HOSPITAL

 

Temo por mim só de noite,
porque sei que a falta será um  balaço,
o aperto da cobra no pulmão,
o estertor no fundo das águas.

À noite lembro dele com mais força,
me conduzindo pela mão
nos caminhos de altíssimas árvores.

Eu fui menos do que ele,
não vi de perto os gigantes assassinos,
nem enfrentei os cães que dilaceram
ulceradas carnes.

À noite ele balbucia coisas

sem sentido para os outros,
mas eu entendo a língua do sopro,
a gagueira zonza dos xamãs de pedra.

Cada palavra balbuciada de saliva e delírio
me faz calar asas sobre o abismo,
na torção geriátrica da boca
vaticinando o meu fim covarde e solitário.

 

 6. SOLIDÃO DE MENINO

 Sei que estou prestes a perder

o braço que me ergueu quase Sebastião.

Foi quem me acudiu em noites insones
e me impôs o rumo
no mar revolto e na floresta escura.

A cada dia ele apaga uma luz
de seu corredor de ventania
e nos seus olhos vejo correr
um menino de sal,
entre besouros do jardim.

Depois que eu recebi a flecha das suas mãos,
aprendi a tecer feridas rosas de Oxóssi, 
ouvindo bugios enlouquecidos.

E me fiz homem sob os seus olhos 
de fera vigilante,
dono da palavra emudecida, do gesto frio.

Ninguém mais foi capaz de me olhar por dentr
o.

 

4.  7. QUARTO ESCURO

 Sei que uma hora as luzes apagarão

e eu terei que enfrentar meus monstros.

Não terei mais a poderosa mão de herói,
nem seus olhos sobre meus passos vacilantes.

Ele seguirá o caminho das aves, cortando o céu,
eu ficarei no meu quarto sem janelas,
na agonia dos vivos que respiram lágrimas.

  

 8. MISSA DO TRIGÉSIMO DIA

 

De passagem pela casa, não há mais jardim,

apenas as folhas no terraço de vento.

Toda a lembrança dos meus passos de cimento

ecoa sem as flores por dentro de mim.

 

Certo que derramo ainda rios de pranto,

e que replanto, pois, os vasos abandonados

pelo tempo: trinta dias já são passados.

Quero a luz que ficou no derradeiro espanto

 

de te perder no aço da longa caminhada,

sem que fossem as minhas súplicas ouvidas

nesse desespero da mão entrelaçada.

 

Queria mais tempo, mais calor da chegada,

mais abraços de reconciliações repetidas,

e o aceno insistente no portão da entrada.

 

 

6. 9. MEMÓRIA DOS VENTOS

 

Dia após dia, dois anos se passaram,

e o tempo não foi suficiente para a cura.

Um látego de fogo me corta a carne

choro de menino no quarto escuro

e a cada memória da passagem, a locomotiva do adeus.

Tua voz ainda ecoa na triste mansão dos mortos

e eu me diluo no clarão das velas,

desde um pranto rumoroso como o dobrar dos sinos.

E não há prece possível, pensamentos que acalmem

os pássaros peregrinos do horizonte febril,

a ventania das candeias, o cheiro dos quintais

e a dor difusa da saudade impregnada nas paredes da casa.

  

7.  10. DOIS ANOS DA PASSAGEM


Tão veloz que se passou, um frio do sertão.

Tudo passa, à revelia da vontade e sorte.

Efêmera é a vida, e para sempre é a morte,

pano branco e pranto derramado ao chão.

 

Dois anos passaram, a fivela e o arpão,

ferida rubra aberta no profundo corte,

pontiaguda espora no cavalo da  morte,

nas águas salobras que me escorrem da mão.


Ainda ouço o grito empalmado na garganta

e o revoar de asas sobre a casa sem jardim,

uma ladainha triste e lágrima aos pés da Santa.

 

E tantas lembranças que revivem o fim

inconcluso - o que me dói tanto que espanta -,

são pedras, memórias, campinas de cetim.

 

 

 

 

 

 

 





RIOS DA INFÂNCIA
Menino das águas turvas dos rios,
sobrevivi nas entranhas da terra,
onde ecoa um canto de punhal no cio,
que me corta, me rasga e alto berra.

Tantas vezes vi chorando esse rio
no fundo de noites e madrugadas,
coroado de névoa branca, silencioso e frio,
que o tenho nas veias ensanguentadas.

As vezes que ouvi o rumor das águas
e me perdi nas veredas contíguas
seus murmúrios me guiaram na escuridão.

Tantas vezes que senti esse abraço cálido 
desses rios curvos no horizonte pálido
que me refiz árvore presa ao chão.

2.ENGASGO
Esse poema, que me trai na ausência do verbo alado,
é pura sintonia fina da alma na insônia delirante.
Ele anda comigo, qual vício da bebida no silêncio alcoolizante,
e me recolhe no espasmo do dia trêfego e mal iluminado.


Eu busco a letra, a forma dilatada de um sol incessante,
impassível à pronúncia, baú hermeticamente fechado
ao pavor de asas coloridas - um sentimento emboscado.
É o vagir do nascimento ruidoso de extinta língua pulsante!

Esse poema que repousa no prato, qual comida intragável,
é a mariposa insone das minhas noites de chuva tropical,
cerceando o ar escuro na luz de um mar improvável.

Ele vem, qual banzeiro, quando ensimesmado paro de navegar,
e fala, quando inexiste boca, na sombra do clarão do esgar,
vomitando flores vivas no repasto da hora capital.

3. DESPEDIDA
Tristeza que se reflete nos olhos de quem olha,
no espelho atrás da porta, pelo tempo carcomida.
Queria voltar atrás, quando nem sonhava a partida,
vestido de metais reluzentes ante a vista zarolha.

Alcei lanças de fogo contra o céu que me roubou a cena,
com as vestes empapadas de sangue das manadas
que atropelam virgens nos campos de flores envenenadas.
Fui longe, seguindo o curso dos rios, com trânsfuga pena

de adiar a sede e a dor do mundo, ladrar de cães
prometidos à minha morte, num abandonado matagal.
À beira da estrada, costurei feridas no meu hálito de sal,

esperando romper a aurora triste da partilha sem pães.
E aquele olhar me sangrou por dentro a gota do peso mau
derramado na face assombrada de um porto sem nau.


4. CASA DOS MAÍRAS
Lá, onde sangram estranhos vagidos,
e a fome do carcará espera rodopiando a presa,
ouço o tropel da chuva por sobre o palmeiral.

Lá, onde cães transidos pelo frio rosnam a fome,
Posso ler os céus de chumbo açoitados pelo vento
E a garra do jaguar me abrindo o peito.

Quisera ter uns dias a mais no estertor da febre
Para curar a alma da tempestade que se aproxima.

Sentir a revoada de papagaios no pânico das águas
Singrando luz e relva, solidão e fogo no escuro.

5. O DOM DA PALAVRA
Entre um rio e uma palavra existe um vão de coisas...
Elas correm no tempo como folhas tangidas nas correntezas,
algumas se perdem nas profundezas outras seguem caminho.
O rio e a palavra choram.

Quero esquecer da palavra...
Quero ser folha, furtiva e lânguida
nas corredeiras de um rio do sertão.

Um dia eu me encontro com ela,
prisioneira de um remanso qualquer,
onde se fundem raízes e folhas.

Entre um rio e uma palavra haverá a fusão das coisas,
caminhos de pedras ásperas, pios de aves incandescentes.
O rio e a palavra choram na minha presença.

6. DEPRESSÃO
Balança a rede no amarelo da febre, oscilante
órbita dos olhos.  Fome e chão, chinelas rasgadas
de amassar a relva em tantas veredas tropeçadas.
Conto os dias no vai e vem da escápula irritante.

Eu quero no resplendor da aurora a infeliz mutante
Que desfila passos de mortes em mim hospedadas,
os Maíras sussurando vozes de almas penadas.
E vai correndo abraçada no seu pote de sangue.

Tropeço na lua vermelha enquanto rescalda no chão
álveas carcaças. Tinir de esporas, fivelas de ouro
adornam o Corpo Santo manietado no gibão.

Assim espero o fim, pendurada a veste de couro
do inválido cavaleiro, ensanguentado na mão
o terçado que abrirá o caminho do sol vindouro.


7.AWÁ GUAJÁ
Tinir de ferros na chapada.
É hora do choro dos órfãos 
embalado por cigarras enlouquecidas de sol.
Hora do suor, do vazio da fome canina.

Perto do silêncio das coisas, resíduos de sertão e de árvores tortas.
Revoar de asas, onde a vista não alcança, espanto de onça acuada,
passos na folhagem, tremor de brisa, lufando nos pelos.

É hora de lutar, o cutelo enlutado espera.
Virão eles com a promessa de recriar o grito da Inhuma
e de refazer a água nos córregos secos.

Eles já estão vindo, as aves podem sentir o fartume do óleo,
as formigas se desesperam nas trilhas onde os fungos morrem.
Motores roncam para que as aroeiras cedam lugar à soja.

Longe, é possível ouvir o estalar dos troncos,
os gemidos de floresta clamando.
 
Como vagidos de criança.


8.DEZEMBRO


Ouvi passar o ano rumoroso tangendo as águas do rio.
Era tudo meu - e arrastado, no doido tinir do sino,
a chuva perene cobrindo o horizonte frio -
enquanto enterrávamos os órfãos à sombra do destino.

Cada passo no caminho abria uma ferida no vazio
e fazia cair gotas trêmulas quem nem o amargo do quinino
sobre a febre temporã. Eram milhares de bestas no cio
cavalgadas em pensamento, tropel de louco peregrino.

Mais um ano foi-se embora, afugentado por ferozes cães
que ladeiam as veredas sinuosas de flores amarelas.
Na acidez da chuva que enterra a triste saudade das mães

haveremos de sumir como touro tresmalhado no mundo,
camuflados nas sombras da madrugadas pias e singelas
por onde espreita a serpente no coração profundo.



9.CANÇÃO DA ESPERA
A canção alada que brota em cada rosa
dos ipês ferindo o entardecer de  sóis
me faz tinir na pedra a estiagem de rio sem foz
e corta o silêncio que afunda na angústia dolorosa

da espera vã onde o peixe engana a fome dos anzóis.
O canto da acauã entristece as tardes chuvosas
reboando longe a batida trilha do cão feroz,
por onde ilumino a fúria das águas invernosas.

É onde eu bebo em alarido mudo o fogo do alaúde
que toca esperanças virgens nas copas amputadas.
E montado no cavalo da senil juventude,

relembro onde me alcança a distância de um tiro
que estilhaço a voz contra o mormaço do chão
e ainda levanto o canto preso na palma da mão.

10. AQUILOMBANDO

Acordar planando nas partículas suspensas
da chuva deixada pela noite cortada
por trovões e coriscos espectrais.

Enrolado no pano de sol estendido no chão,
madrugando na temperatura mais caída da manhã,
ouvindo o ressonar dos corpos,
a tristonha acauã, o agudo ladrido de cães
e o revoar de papagaios sobre os cocais,
o borbulhar dos peixes no remanso
e a explosão das águas nas cabeceiras,
os cardumes enlouquecidos
pelas chuvas torrenciais de fevereiro.

E assim revirar o tempo dos insetos famintos,
as lacerações das ervas daninhas,
o lamaçal das veredas tortas e sujas,
esquecendo as frutas coloridas no chão de relva
mais tarde devoradas por um tapete vermelho de quatis.

E não cronometrar as horas é como andar descalço
No fundo de areia alva dos rios.


11.CHUVA NA BAIXADA

Chuva significa terra fofa
esperando a semente
onde era incêndio e pedra.

Chuva traz a relva e os frutos coloridos
para a beira das estradas.

As folhas gotejantes expulsam brotos
no silêncio das noites molhadas.

Os caminhos sinuosos se estreitam
e apertam na fartura dos cipós e ramas.

Os currais enlameados
cheirando a estrume e urina,
guardam bezerros tristonhos de frio.

Nuvens de mutucas atacam
sedentas de sangue quente.

Homens escuros de chapéu
remam compassadamente e observam
o suspiro das curimatás
e o mimigado dos peixes graúdos.

Tempo de chuva
o dia transcorre em gotas
no intervalo das águas dormentes.

Queimamos o grito na garganta
para atravessar o rio
e falamos com a voz macia
enquanto as trevas ardem na fogueira.


12.SENTINELA PARA EUSÉBIO KA'APOR

Eles rabiscarão o caderno da morte,
enrijecida sobre a mesa de jatobá,
mas não verão a mãe terra chorando ao lado,

com os cabelos e unhas sujos de sangue.

Pisarão nas flores de pequi no chão úmido,
mas não verão a criança de arco retesando os passos
nas veredas tortas de milhões de árvores incendiadas.

Cuspirão sinceros sentimentos de perda
na tristonha face dos metais pendurada
pelo clangor mentiroso dos sinos de bronze.

Contemplarão a ferida aberta,
como atestado de anjo que bafeja
o grito perdido no vendaval da cruzes.

E passarão ao largo do corpo translúcido,
com a indiferença costumeira dos tratores,
que também morrerão na próxima estação.


13.LEMBRANÇA


Tanto mais dói a fome  a espera se alonga,
vazando formigas pelos cotovelos,
crescendo urtigas nos quintais abandonados,
onde farejam gatos no cio.

Tanto mais eu desejo o corpo simulacro,
fatiado em pedaços de lenho e pedra,
ouço cantar a voz do tempo
no corredor vazio da esperança decepada.

Lembra da mão entrelaçada mentindo
e milhões de cobras parindo no rio de lama,
o sol resvalando sobre árvores inconclusas.

Lembra que eu fui menino com medo
de ser devorado pela morte das aroeiras
e fugi para dentro da noite sem janelas.


14.ÓDIO JUSTO

Não peça perdão pelo ódio justo,
abelhas voltarão sobre o destino
onde cães feridos deitam o sono.

Desfia o grito e a lâmina fria
na garganta apertada do choro de vidro.

Solta a rédea e salta
sobre a cerca de amputadas pernas
subindo o morro de assombrações azuis.

 

Um tiro surdo que se aproxima
trazendo o sal do sangue na língua.
O terço geriatra, a canção perdida no tempo,
a voz estilhaçada da fome sobre a mesa.

No fim dos dias não haverá perdão nenhum,
apenas a seiva do tronco cortado,
choro de criança perdida na rodoviária,
murmúrio de rios na madrugada.

Levanta tua voz e segue, com o lado aberto,
rastejando a vitória das tochas no pântano florido,
até que os dobres do sino derrubem o cobre do céu.
      


15. ALDEIA GURUPIÚNA

Essa espera de rio na curva das manhãs
carrega nos ombros o sino da catedral da fome.
Um soluço de peixe no piscar de olhos
divide as horas mornas dos mosquitos.

Vou embora pisando macio sobre folhas,
lamentando o luar das onças pretas,
cantando baixinho a toada fúnebre dos tucanos.

O rio me observa grunhindo ao largo,
na estreita passagem das correntezas translúcidas,
onde árvores de raízes podres tombam.

Essa espera de rio me faz pensar na estação
das borboletas e no melancólico ronco dos bugios.

16. HORA DE DIZER ADEUS

Não vamos falar de coisas tristes na hora de partir,


apenas olhe como é medonho o silêncio que sai de mim,

lembrando a chuva nos arroios e o tatalar de asas no vácuo,

a minha fala presa em alguma raiz no fundo.


Não me diga nada, se puder...

Já me bastam os prisioneiros do meu cárcere imundo,

clamando por mim com as mãos gangrenadas,

lembrando a dor de não sentir absolutamente nada.


Melhor seria baixar os olhos,

antes que o medo se aproxime, com a boca manietada,

e o lampião exploda a verdade no quarto escuro.


Não falaremos de coisas tristes hoje,

sem força para olhar no alto da tresloucada via láctea,

apenas sentiremos a presença das estrelas no céu de labirinto

e o rugir dos ventos na longínqua fúria do jaguar.



17.VELHICE

Eu nasci numa casa de tristonhos corredores

onde o eco da voz me fazia sentir mais sozinho.

Sem jogos de criança, no beiral havia um ninho,

e, na frente da casa alada, jardins sem flores.

 

E aprendi brincar comigo mesmo, sem muitas dores,

falando a língua do silêncio nos ventos de moinho,

com olhos de fogo no escuro, chorando baixinho,

e o lampejo de morte nesse chão de horrores.

 

Não lembro do desespero febril das andorinhas

em trajetórias sem sentido, no céu sujo de cobre,

e meu pensamento camuflado de penas órfãs.

 

Não guardei lembranças de tantas mortes vizinhas

no miasma de ossos dentro do baú, sujo e pobre,

que herdo, mudo, no inventário de palavras anciãs.



18. MEDO

Aqui, onde se ouve o medonho grito da raposa,
a escuridão lava o céu de nimbos conformados
e as estrelas são vaga-lumes pendurados
no chão invertido de quem na árvore repousa.

Aqui, onde a lua brilha o dorso castanho do jaguar
e se ouve o empalmar de folhas no alto das copas,
ecoa na lage o tinir dos cascos azuis das tropas
de anjos de gibão, alados, sem lábios para rezar.

E a cada rumor da brisa de prata, um sussurro
de centauro de olho esverdeado e ferido,
como a bruma das ninfas, o clamor puro do urro.

Aqui, onde meu pranto é reza senil, e ainda espero

vencer o medo, coisas estranhas e sem sentido

acontecem no porão escuro do desespero.


19. TROMBETAS

De onde eu venho as árvores são de ferro,
as estrelas são tochas de chumbo iluminando o céu,
e a navalha das chuvas em postas abrem o corpo.

De onde eu venho o poema inflama ínguas,
os versos queimam o dorso lenhoso dos dragões
e todas as frutas são da cor do bronze.

De lá eu chego portando andrajos de fogo, 
o aríete deitando abaixo portões de sarcófagos,
o terçado de sangue iluminando o diamante,
o topázio dos olhos, a bruma dos castelos.

De onde eu venho somente os cães falam,
regurgitam sementes aladas, dançam a ciranda das tetas,
e em nome do pai, rezam o terço para o Deus da fome.


20. NOITE NO HOSPITAL

Temo por mim só de noite,
porque sei que a falta será um  balaço,
o aperto da cobra no pulmão,
o estertor no fundo das águas.

À noite lembro dele com mais força,
me conduzindo pela mão
nos caminhos de altíssimas árvores.

Eu fui menos do que ele,
não vi de perto os gigantes assassinos,
nem enfrentei os cães que dilaceram
ulceradas carnes.

À noite ele balbucia coisas sem sentido
para os outros,
mas eu entendo a língua do sopro,
a gagueira zonza dos xamãs de pedra.

Cada palavra balbuciada de saliva e delírio
me faz calar asas sobre o abismo,
na torção geriátrica da boca
vaticinando o meu fim covarde e solitário.



21. SOLIDÃO DE MENINO

Sei que estou prestes a perder
o braço que me ergueu quase Sebastião.

Foi quem me acudiu em noites insones
e me impôs o rumo
no mar revolto e na floresta escura.

A cada dia ele apaga uma luz
de seu corredor de ventania
e nos seus olhos vejo correr
um menino de sal,
entre besouros do jardim.

Depois que eu recebi a flecha das suas mãos,
aprendi a tecer feridas rosas de Oxóssi, 
ouvindo bugios enlouquecidos.

E me fiz homem sob os seus olhos 
de fera vigilante,
dono da palavra emudecida, do gesto frio.

Ninguém mais foi capaz de me olhar por dentro.



22. QUARTO ESCURO

Sei que uma hora as luzes apagarão

e eu terei que enfrentar meus monstros.

Não terei mais a poderosa mão de herói,
nem seus olhos sobre meus passos vacilantes.

Ele seguirá o caminho das aves, cortando o céu,
eu ficarei no meu quarto sem janelas,
na agonia dos vivos que respiram lágrimas.





23. ANCIÃ NA JANELA

Haverá alguém na janela colonial,

emoldurada na velhice da arquitetura,

ouvindo os bem-te-vis amanhecidos.

Haverá luz nos seus olhos de muitas rugas,

lembranças de um império de riso e luz,

na canção fantasmagórica de uma escápula.

A canícula exposta na calçada, jasmins

no ridículo alpendre, onde pousa o pássaro.

Há de haver um lugar no horizonte incendiado,

em que a paz repousará como um gato

nos braços mornos do tempo.


24. UMA CANÇÃO PARA DEUS


25. UMA CANÇÃO PARA DEUS

Me deixa seguir as luzes 
que brilham longe na floresta,
orvalho pingando na folha, o pio da coruja.

Quero beber gotas de pensamento bons, 
fluindo para as nuvens como sementes aladas.

Faça de mim o silêncio puro, o ruflar de asas,
murmúrio de água na pedra...

Quero sentir a estrela dos ventos,
a me queimar na face com o amarelo

resplendor do ipês.

 

Me permita correr com os meteoros
que cortam o céu de fogo azul.

 



25. ANTES DO FIM DO MUNDO

Existe uma coisa a ser pensada


no imenso novelo da vida.

Um lugar onde não haja o barulho

de buzinas e ronco de motores...

Um lugar onde os telejornais não alcancem,

com as últimas notícias de um mundo violento

e sem sentido.

Precisamos considerar que o vácuo

dos últimos acontecimentos

inscrevem na mesma sala escura

o mais recente ataque terrorista

e a surpreendente prisão do mais novo 

e insuspeito corrupto.

Não seria mais uma espécie de fuga,

pois se foge quando se deixa algo para trás.

Seria apenas outra forma de encarar os sons,

diluídos em gotas translúcidas de orvalho.

Seria uma forma de ouvir as vibrações

que emanam das afinadas cordas vocais

ocultas nas densas florestas.

Seria apenas uma forma de mimetismo

onde nossos pés se transformassem em raízes

e em nossos ombros repousassem os ninhos.


26. ARMAGEDON



O mundo das silhuetas bruxuleantes

ruirá,  um dia de vento, tosco e frouxo,

num grande estalo de árvore tombando.

Ouvirei, pois, num relance de coxo, 

- chama trepidante de lamparinas -

o mugido azul do novilho mocho

na parede bolorenta da insônia

onde lírios morrem em desabrocho.



27.AMOR DE PERDIÇÃO

Teria flores de esgar para enfeitar teu seio

de potra ofegante no cio concebida,
laço de corda, o flanar de asas ao meio
derramando sóis na cama enrijecida.

Dentro desse ar puro, na escuridão do céu,
seria gume, cortando nuvens de centeio
e chiar de morcegos reclusos no mel
onde morre a alma partida ao meio.

Beijos para calar a boca de vinho doce,
sargaços de fria maré, o tempo me fosse
rodopio de folhas na louca ventania.


E o pulsar de corpos na fímbria do dia
esmaece o tempo do meu feliz degredo
onde berro no palácio febril  do medo.



28. SONETO DE AMOR SEM FIM

Foi brusco o nosso amor, e não me arrependo,
vigiei lamparinas, noites quentes a fio,
afoguei-me, incendiando meu navio,
náufrago de amor, e por amor morrendo.

Não terá fim esse amor de velho louco,
esquecido farol de uma ilha solitária,
onde se morre todo dia, em luta diária,
cada dia de mar perdido, sangrando um pouco.

Não será muito sentir no peito a maré,
pulsando algas, o sal me corroendo a fé,
se adormeço no profundo sono dos mortos.

E reviver o passado desse amor vivo, 
na alva rede do mar, do amor que me privo,
é como estar vivo em cemitério de portos.


29. MENINO DO SERTÃO

Fui menino que flutuou na correnteza,
o cobertor de sol sobre a pele queimada,
branca pluma, e tinha o afago de brisa alada ,  
imóvel remanso na água da tristeza.

No verão era a vertigem do redemoinho,
tapete de folhas, frutos caídos ao chão,
o círculo do sol vermelho do sertão,
garranchos e cipós de multiagudo espinho.

De noite, ouvia o touro negro no curral
e a acauã anunciar o mormaço repentino;
na rede, entrevia passarinhos no beiral.

Dia de vento, era o ruidoso estrondo de portas,
o zigue zague zunindo das folhas mortas 
e o guincho dos macacos dentro do cocal.



30. MARCADO PRA MORRER

Em memória de Flaviano Neto, líder do quilombo Charcho, 
em São Vicente de Férrer, assassinado em 30 de outubro de 2010.

Dia de receber notícia da morte:
uma serpente que levanta a folha,
o escorpião oculto na terra zarolha,
o espinho de tucum vigiando a sorte.

Quisera saber que fora abraçado,
sem saber que a morte estava por perto,
um jaguar urrando no campo aberto,
sopro da brisa no rosto molhado.

E toda noite revivo a lembrança do morto,
aquele sorriso de sofrimento,
estampado na água do rio sem porto.

E ficou no ar gelado o aceno em vão,
a sineta no cordeiro imolado,
e o sangue do altar derramado ao chão.