domingo, 20 de agosto de 2023

114. SACRO SEGREDO

 Eu tenho um segredo de águas corredeiras

que brotam silenciosas das rochas da amazônia

e vagam insinuantes na floresta 

até formar os braços de caudalosos rios.


Eu tenho um sacro segredo de asas levíssimas

planando no mais alto da serra do Tiracambu

onde a névoa encobre os córregos 

que serpenteiam até o Pindaré e o Gurupi.


Uma pluma, uma gota, na palma da mão,

na íris cega, no ar sem pulmões, nas unhas

sem dedos, no hálito balsâmico de hortelã.


No cheiro das primeiras chuvas eu alimento

meu sonho pagão de altares barrocos

onde a sede é leve e o céu se dilui em estrelas .

113. POEMA INCENDIÁRIO

Meu dia envelhece comigo, enraizando calçadas 

e ruas, alimentando cães e gatos, 

protegendo os ninhos dos bem-te-vis.


Minha mesa é testemunha dos desvarios

em que a letra engole a letra e as palavras

emergem de um lago turvo de algas.


Meu poema chora com a mãe do infrator baleado,

se fere nas cercas farpadas do latifúndio,

e morre de frio debaixo das marquises.


As palavras que forjo são ríspidas e angulosas,

cortam as mãos e a língua dos homens,

atravessam os corpos como flechas assassinas,

e tombam cambiantes na espuma dos mares.

112. TARDE DE AGOSTO

 Um dia de silêncio escorre lentamente 

dentro da tarde abafada de sons.

Eu me apego numa estranha razão de viver,

cheia de flores minúsculas, pedentes de vasos,

espalhadas aleatoriamente ao longo dos muros

cobertos de ervas e musgos envelhecidos.

Alguém grita no oco do mundo

onde portões de ferro batem com estrondo

e o eco de miados no sótão escuro

consome o que me resta de lucidez.

É dia, mas faz dolorido escuro

na mente onde badala o bronze de um sino.


111. DIÁRIO DE UM ÉBRIO NA CIDADE

Entre a guerra dos homens eu caminho trôpego

meus passos cortam as ruas de pedras ásperas

e vejo cães circulando entre carros e pessoas

depois vão dormir ao lado de mendigos sujos e famintos.


De um mirante torto, janelas abertas para o mar,

emergem ervas daninhas buscando os raios do sol.

Nos azulejos trincados das fachadas faíscam meus olhos

de homem semi-louco, expropriado de angústia.


No parapeito da orla respiro o cheiro de mangue

por sobre onde revoam guarás ensanguentados

encerrando as inquietações do dia morno.


E aqui me vou tateando o ar rarefeito dos becos

a cidade resvalando sob os pés, o lixo onipresente

e dúzias de urubus ornamentados os postes.