quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

90. MARÉ DE INFÂNCIA

Quando eu era apenas uma criança, meu nome
me soava estranho, como se não fosse o meu.
Diferente dos outros, só me comoveu
o mar, com sua fúria de jaguar com fome.

Quando eu era criança, chorava escondido,
no quarto escuro. Só um gato fusco viu
minha dor abafada, que nunca mais saiu
do meu peito, cais sem mar, navio perdido.

E toda vez que eu via o mar, sentia o chamado
do castelos de pedras, veleiro assombrado
singrando no meu peito, o sal lavando os pés.

Lembro da revoada de pássaros febris,
e de um sentimento  vago, pintado à gris,
esgarçando o horizonte de tristes marés. 

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

89. DE MÃOS DADAS

Não se preocupe, eu te escuto.
Não vou embora.
Não vou desistir de você.

Tá tudo escuro lá fora,
somente os gatos no cio rompem o silêncio.
A rua está deserta, exceto por um skatista louco.
Ele sobe e desce a rua, treinando piruetas.

No alto do bairro, dá pra ver os telhados, lá em baixo.
O céu denso, nuvens grossas tapando a luz da lua.

Tua mão de parkinson ainda me abençoa,
mas já foi firme como aço,
desde os tempos das aulas de box.

Você me manda embora, toda noite.
Eu espero, te olhando, em pé, com as chaves na mão.

Eu demoro um pouco, conversando coisas sem sentido.
Faço você rir, em lampejos de lucidez.

Tua raiva não faz mais sentido, não é real.
Nossa conversa é como uma pescaria paciente,
onde se espera o momento em que volta a consciência.

E depois do beijo e do abraço eu me vou.
Mas voltarei, sempre.




 




88. PSICOGÊNESE

Choveu no dia em que minha mãe me pariu.
Era noite, ela, urrando de dor, segurava um terço.
Meu pai fumava antes de entrar na sala de parto.

Dizem que chorei com estrondo,
tardei chegar, por isso não me chamaram Sebastião.

Era mês de chuva, 
os campos alagavam os baixões de mururu.
O festejo alegrava a cidade, a notícia chegara da Ilha.
Houve algazarra, canoeiros brindaram cachaça,
a parentada disse amém, quando o rádio avisou.

Minha mãe sofrera, assim como no primogênito.
Eu viera ao mundo grande e forte,
e olhava para o sol na janela aberta, 
toda vez que amanhecia.

De lá para cá, ouço o trotar de cavalos loucos na mente.
Uma brisa estranha sopra no meu peito,
que arqueja folhas secas do verão.
E meus olhos rangem os dentes pro silêncio.

Vejo vultos informes nos corredores
e cães uivando longamente pro céu curvo e iluminado.

Desde que vim ao mundo é a mesma coisa:
revoada de pássaros 
atravessando o lago triste do meu coração.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

87. O JAGUAR NA CHUVA

Esperei a chuva de mãos dadas com o nada.
E ela veio, seminua, arrastando troncos
lodosos das margens dos rios. Seus roncos
ouviram-se no desvão oco da madrugada.

Enquanto minha mãe cobria os espelhos
e duas brasas rubras nos olhos do gato
eram o lampadário da casa no mato,
meus ouvidos buscavam o jaguar vermelho.

Meu sonho perdeu-se no estranho céu chumboso,
brisa que sopra nas redes avarandadas,
enquanto esperava o monstro silencioso

vir ao meu encontro de pupilas dilatadas,
menino do sertão, de pranto corajoso,
com um candeeiro de luzes apagadas.

86.LEMBRANÇA FÚNEBRE

Ninguém soube o porquê da partida repentina,
não houve tempo sequer para a despedida;
Simplesmente desligaram você da vida,
como, de noite, se apaga uma lamparina.

Eu tive que engolir meu choro numa rede, 
ouvindo ao longe o tristonho canto da coan;
na memória, badalando a esperança vã,
o tic tac alto do relógio na parede.

Fui contando as horas para o raiar do dia,
as abelhas anunciando a chuva espectral,
pois que me convenci dessa ruptura final.

Hoje ainda relembro os momentos de alegria,
um luto frio que nem  chuva torrencial
lava, a casa grande, uma sala vazia.