terça-feira, 30 de julho de 2019

82. CANGACEIRO

Quando eu nasci o mundo ouviu um grande estalo,
um vento xucro soprou no meu nascimento,
a terra gemeu e fez rachar o cimento,
e ressoou bem distante um canto de galo.

Alegre o meu povo cantava uma ciranda,
Pato, peru e capote eram a comida,
Pitu, catuaba e jurubeba eram bebida,
o forró torando e o mundo rachando em banda.

Quando eu cheguei, sei, muitos torciam a boca,
eu sorria no colo de uma velha louca
com a minha boca cheia de mingau quente.

Por certo eles me sabiam lugar-tenente,
então vindo ao mundo para assombrar gente,
meu pirão primeiro, se a farinha é pouca.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

81. DE REPENTE A MORTE

(em memória de Zé Enedina, liderança rural de Araioses, assassinada em 19 de julho de 2014)

Ninguém se importa quando morre mais um Zé, 
ainda mais o Zé que vigia o carnaubal,
envelhecido no cerrado, andando a pé,
onde foi morto de faca como um animal.

Ninguém pôde ouvir os gritos daquele Zé,
a não ser o rio, com suas águas de cristal.
E morto ficou, estendido, na sua fé,
o Enedina, à sombra da palmeira letal.

Mal sabia o algoz que matando desse jeito,
como testemunha das facadas no peito,
a floresta amaldiçoaria o assassino.

E para cada curva do rio Santa Rosa 
há uma lembrança destemida e poderosa
desse guardião que morreu como um peregrino.




80. POETAS SÃO COMO MENDIGOS

A imagem mais próxima dos poetas não é a dos burgueses,
limpos, bem vestidos, ao redor de comidas e bebidas finas.

Ninguém faz poema satisfeito consigo mesmo, cheio de plenitude.

Os poemas não vêm do céu, como querem os crédulos. Não existem musas, o poema não nasce de uma inspiração da alma.

Poetas são como mendigos de rua, maltrapilhos e famintos. Seus amigos são os cães abandonados das praças e seus quitutes estão no lixo dos mercados.

Não se faz poemas para acalentar, para adoçar os dias, para aliviar as dores. O poema não serve para nada, é inútil, por isso sobrevive.

O poema está nas valas, nos lixões, ao lado de ratos e urubus.

Cada palavra do poema representa uma lesão, um espinho, uma navalha.

Lavrar o poema é duro, áspero, como lavrar a terra. No chão das flores residem os vermes e a decomposição. 

Poetas lapidam versos com as mãos sujas.

quarta-feira, 10 de julho de 2019

79. FIM DE LINHA

A primeira vez que percebi a diferença 
foi duro para mim, os olhos resvalando
por sobre a mesa de pau d'arco, a dor imensa
no paladar, a tua saliva me amargando.

Um rato soturno roía algo na dispensa,
dava para ouvir, tal o silêncio cortando
nossa vida em comum, embora a crença
na cura ainda houvesse, o amor desmoronando.

Não quero mais nada, senhora do meu pranto,
porque tudo na vida um dia perde o encanto,
era tudo o que eu sabia, mas duvidava.

Primeira vez que percebi que algo faltava,
era um dia de sol, um pardal cantarolava,
e eu abafei o choro que nunca houve, no entanto.