terça-feira, 31 de dezembro de 2024

TRAVESSIA

Se tivemos sonhos nesta grande passagem

foi porque assim nos permitiram  a ventania das janelas,

as marés espumantes no casco, a vela acenando o adeus

de Alcântara, no porto soçobrando a infinita ladeira.


Se havia o que sonhar foi porque Deus

nos fez ilusórios, sedentos de amores passageiros,

ensimesmados no parapeito de um barco de travessia

onde o temido Boqueirão faz gemer as embarcações.


E os anos passam, como sóis nas solitárias praias,

circundando o verde e o azul das águas turvas

em algum lugar onde a torre de um farol desponta

e a memória dos náufragos se apaga.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

ITINERÁRIO DO CORAÇÃO

 Cada ano passa como um murmuroso esvoejar,

e ouvimos vozes nos corredores escuros, passos

que se alongam nos dias e dias a se perderem de vista.

Cada ano passa como manadas de cavalos,

melancólico tropel em nuvens, ventanias

que rodopiam em folhas, depois em chuva.

Eu finjo me manter forte no leito das águas

mas meu pranto é reovada, grito no horizonte recurvo.

A cada passagem - que me dizem ciclo da vida -

morrem os nossos, descem as cordas e tocam os sinos

e nenhum sinal de que merecemos ficar

como pedra de sal no coração amargo.



quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

XANGÔ

Esse vento que sopra dos meridianos

e faz gemer o ferrolho das janelas,

tangendo no céu o tapete das estrelas,

traz folhas vivas dos cemitérios acadianos


para dentro das casas como revoadas

de meninos. Essa claridade das frestas

que resplandece em azulejos de funestas

ruas (onde faiscam nas altas fachadas


partículas de sol e augúrios de sereias)

é como um grito que atravessa a baía

para ecoar nos Lençóis de alvas areias.


Esse urro de touro/jaguar na chuva fria

é meu entardecer de pássaros sem cadeias,

é meu vodum de prata na lua que me guia.