sexta-feira, 12 de novembro de 2021

99. SÉTIMO DIA DA PASSAGEM

 Agora é definitivo: foste.

A sétima vela será apagada, como a tampa do caixão.

Um murmúrio-choro conta o terço,

e eu me equilibro na borda de uma sepultura

cavada à unha, ferindo as mãos de anjos lúgubres.


No meu peito um sino enlouquecido dobra,

ecoa nos vãos da noite sertaneja, pontilhada de luzes.

Ninguém sabe, mas, no meu silêncio, grito

e muitas feras ouvem os meus vagidos de infante.


Como é grande o meu medo do escuro.




sexta-feira, 5 de novembro de 2021

98. Que a dor não seja tão grande quanto a vida.


Há 51 anos, eu vim ao mundo nos teus braços,

no mesmo hospital onde hoje me desespero sem ar.

A cada passo na rampa que desce ao necrotério

sinto o mundo resvalando sob os pés.

Nos meus ouvidos ecoam gritos de pessoas entubadas

nos corredores brancos desta casa de mortos.

Sinto o pulsar do meu coração de náufrago,

abraçado a ti, até o derradeiro instante.

Teu olhar sobre mim virou tatuagem:

é o chamado para o dom da fúria,

a luta feroz pela vida,

na derradeira hora da agonia.

97. primeiro dia de sofrimento - II parte

 Vamos juntos.

Teu olhar procurando pistas no meu rosto.

Tua mão sem forças para apertar a minha.

Tua voz silenciada pelo tubo.

Não importa mais novembro 

e as sementes dormidas pela chuva temporã.


Aqui estou, firme. Como você sempre foi.

Olha pra mim, eu te trago forças.

Lembra dos rios no sertão,

do sol vermelho no poente azul.

96. Primeiro dia do sofrimento.

 Não sabia que lembranças podiam paralisar a dor.

Um dia, era tudo sol e relva, os dois caminhando mata a dentro,

somente por caminhar, em silêncio, para não espantar os bichos.

Ele, sempre à frente, meu escudo, 

apontando o carcará no alto do pau seco.

Depois, inúmeras aves, rastros, trilhas ...

Até o cair do sol, nós juntos, gargalhando, conversando

no retorno para casa. 

Era só entrar no carro e ir embora, 

já pensando no outro dia.

domingo, 25 de abril de 2021

95.TAPETE DE ESTRELAS

Meu velho pai, hoje as estrelas brilham,

o céu todo evapora a tristeza selvagem das serras.

Acho que tu podes sentir,

nosso destino foi selado nas trilhas, nas enchentes dos rios;

eu seguindo sempre teus passos, que me abria os caminhos.


Pai, como dói te ver prostrado,

contando os dias que tu ainda me abraças,

o perfume de rosas rubras testemunhando nossa dor,

a janela do quarto aberta para as mariposas das chuvas.


E a fala importa menos que o olhar,

vagando no céu, esperando a brisa fria do inverno.

Eu te sinto na fome do jaguar e no tropel furioso dos cavalos.


Pai, olha, as estrelas estão brilhantes no céu...




quinta-feira, 25 de março de 2021

94. ANÚNCIO DE INVERNO

Esse canto rouco que me chega aos ouvidos

resvalando nos troncos escavados por raios,

é o bramido de frio dos bugios transidos

na febre da manhã, o sol em desmaios.


A réstia abre a névoa dos alaridos 

 na revoada triste dos papagaios.

Eles cortam os ares nos ensaios

de novembro, mês dos frutos caídos.


Nuvens anunciam chuvas vesperais,

formigas perfilam-se em correição,

a acauã confirma todos os sinais.


Eu espero as águas febris da estação,

o olhar esparramado nos beirais,

ouvindo ao longe o ronco  do trovão.

93. PANDEMIA

 Que tempo estranho esse que tudo chora,

que homens andam nus no agouro da gralha?

Que chuva de sal é essa, que se espalha

no torso oco da luz do lado de fora?


Quem me chama no escuro do portão?

 - Um cheiro de flor anunciando o fim -,

cidreiras espalhadas no jardim

e o cheiro da peste orvalhando o chão.


Que tempo estranho, a ventania soprando

de baixo pra cima, pessoas morrendo,

muitos sóis engasgados no oceano...


 As pessoas vagando sem destino certo

 nas ladeiras, o cemitério aberto,

e alguém, enlouquecido, toca um piano...




domingo, 21 de março de 2021

92. SILÊNCIO

 Havia silêncio só dentro de mim

quando a chuva caía tristemente

sobre as copas da árvores.

Toda a mata bramia com as águas,

grilos estridentes, aves noturnas, bugios,

peixes que espanam a água e borbulham,

formigas cortadeiras trabalhando sem parar.


Gotas frias escorrendo pelos troncos,

um cheiro de fumaça para repelir mosquitos.


Meu silêncio é minúsculo, diante dos raios e trovões

que rasgam o céu e abalam o mundo.






sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

91. MEDO DE MORRER

Eu já temi a morte empastelada no chão
da casa, as abelhas no ouvido e nariz,
a dor roçando os móveis, recado de giz
tatuado no muro alvo do caramachão.

A minha gata de olhos de cobre, em vão,
contemplando o jardim sujo, algo me diz.
De tanto amar o mato, o espinho por um triz,
hoje não temo mais me acabar no sertão.

Tenho um cavalo castanho na baia, esperando
arreio de bride, o terno de couro adornado
em fivelas, próprio para romper espinho.

Da minha janela, vejo o gavião no ninho,
carijó, bico recurvo, as crias demandando.
Por que teria com a morte algum cuidado?