quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

78. PAIXÃO

Coisa que se faz por teima, não por convicção,
é amar quem não se pode amar, por simples medo; 
correr atrás de boi bravo, faiscando o lajedo,
quem nunca vestiu perneira, chapéu e gibão.

O que se faz tirando lasca do rochedo,
o cavalo selado resvalando o chão,
o guarda-peito protegendo o coração,
é o sonho de viver, mesmo morrendo cedo.

Pois eu me vi perdido no mato seco, 
o sangue escorrendo na cara, de pau e espinho,
as moitas de unha-de-gato estreitando o beco.

De tanto correr fazendo redemoinho,
do tropel do meu coração se ouvindo o eco,
estafei a montaria para morrer sozinho.


quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

77. PRESA

Na noite que eu a vi uma coan cantava triste,
pros lados da serra encoberta por neblina,
e eu tive a certeza dura que o amor existe,
faísca de brasa na asa vulturina.

Na noite que eu a vi não havia mais lua.
Andava tateando pelos vãos do caminho,
tal como o jaguar, farejando a carne crua,
perambula pela mata, esquivo e sozinho. 

Melhor sorte o Criador da Terra não me dera,
por avistar de relance os olhos da fera
que até hoje todas as noites me consome.

E não ter visto aquela visão eu quisera,
mesmo que ao preço de saciar sua fome,
melhor seria nem sequer saber seu nome.


segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

76. TRUPIADA

Eu fui o poeta que se perdeu no rio torto,
onde um papagaio amarelo bebe água
e a onça parda come um bicho morto,
na serra do urubu que a ravina deságua.

Eu derramei meu canto de flores sem horto,
as minhas lágrimas irrigando tanta mágoa,
sendo elas a tampa do meu caixão sem tábua,
a sina crua de um velório sem aborto.

Vivi cegando para as cobras do sertão
que também se escondem no orvalho do capim,
adiantei meu passo coxo na contramão.

Ouvi o tinir do ferro em talhe de facão,
vi a espora ferindo de lado o meu rim
e rompi a cruz de espinhos com meu alazão.

75. EU PEDI

Eu quis o mundo menos complicado,
o tempo claudicando e sem promessa,
todas as coisas fluindo sem pressa,
como o céu azul de um dia abençoado.

Colhi flores ao longo dos caminhos,
abracei amigos que foram mais cedo,
perdi guerras, porém lutei sem medo,
tal como as aves refazem seus ninhos.

Para esquecer do tempo que me devora
nadei nas águas assassinas do rio,
esperando que chegasse a minha hora.

Escalei a árvore do desvario,
candelabro de ferro que apavora 
nas noites chuvosas do meu vazio.

sábado, 12 de janeiro de 2019

74. LEMBRANÇA

Brotavam flores da terra crua do sertão,
no horizonte era  tudo espinho, áspero e duro,
tardava o passo o croatá, espalhado pelo chão,
e de noite estrelas pontilhavam no céu escuro.

Eu ouvia a cigarra e a coan no pau seco
chamando a chuva que não tardava e caía,
tudo ficava verde, o igapó se refazia,
o berro do bugio contente fazia eco.

O peixe na fogueira, a nuvem de fumaça,
meu pai na rede, não tinha medo de nada,
dormia ao lado de uma espingarda de caça.

Memória do infante que sempre chora triste
com o rosto frio colado na vidraça
a lembrança de um tempo que não mais existe.