sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

104. PRIMEIRA IMPRESSÃO SOBRE AS CHUVAS

 

Melancólica chuva de fim de ano
em que se contam as pessoas mortas.
A janela aberta e o ranger de portas,
acauãs rompem o silêncio profano.

Dezembro chega como por engano
arrastando velhas árvores tortas
pelos rios de correntezas absortas,
no céu de chumbo ruge o trovão insano.

103. CHUVA DE NATAL

Hoje chove.
Melancólica chuva de inverno, perto do Natal.
A ceia não será mais a mesma, porque um lugar estará vazio.
Nós conversaremos amenidades, sem a coragem necessária para sorrisos largos.

Dezembro tem chuva. A de hoje começou noite passada.
Refrigerou o chão abrasivo do verão, molhando as sementes dos ipês, das aroeiras e de um sem-número de árvores nativas resilientes.

Eu me imaginei criança no sertão, de mãos dadas com ele, perambulando pelas margens dos rios cheios, contemplando as correntezas repletas de vegetação arrancadas das margens pela força das águas.

Antes, me vi carregado nos braços deles, saindo das canoas, infestadas de insetos dos campos da baixada.

E de repente fui trazido no pensamento para o dia da partida, eu e ele sozinhos à espera da viatura funerária.

terça-feira, 5 de abril de 2022

102. QUINTA MISSA DO LUTO

Quinto mês, desde que o céu oscilou e ruiu.

Tinha a crença estranha de que não chegaria

esse dia de fúria, na quinta lua de abril,

redemoinho de folhas e ventania.


Quinto mês de luto, imenso vazio,

de cigarra na chapada, e de noite fria.

A tristonha sina da chuva se cumpriu

e eu pressenti a onça rondando a coxia.


Só lembro que tive sede, mas não bebia.

Tive fome, porém, comer não conseguia.

Virei ossada branca na vereda empoeirada.


E foi um choro triste de cauã empoleirada,

antecipando a estiagem de cada dia.

Ele se foi sem saber que eu também morria.

quarta-feira, 23 de março de 2022

101. O CINCO DE NOVEMBRO

 Enfim o dia mais temido chegou.

Eu me transportava para outro lugar, distante do desespero,

uma forma de me manter lúcido e ativo.

Mas por baixo de meus pensamentos de lago congelado

havia milhões de loucos gritando dentro de uma jaula.


O ar rarefeito do quarto comprimia o pulmão, me fazia buscar janelas,

e eu não conseguia olhar nos olhos dela,  mãe inconsolada.

Eu senti a febre no último abraço, que esperava não ser despedida,

o adeus dos píncaros, o voo sonolento das águias

- salto para o abismo de enevoado despenhadeiro.


Hoje eu quero o silêncio, com sua água doce,

as nuvens oscilando no céu, a chuva torrencial dos dezembros azuis.

Agora, no vão da sala onde reside a cadeira de ferro enrijecida,

posso dizer o quanto a dor assombra e adoece.






terça-feira, 18 de janeiro de 2022

100. MARCADO PRA MORRER

 (Em memória de Flaviano Neto, líder do quilombo Charco,

em São Vicente de Férrer, assassinado em 30 de outubro de 2010, ainda impune).


Dia de receber notícia da morte:
uma serpente que levanta a folha,
o escorpião oculto na terra zarolha,
o espinho de tucum vigiando a sorte.
Quisera saber que fora abraçado,
sem saber que a morte estava por perto,
um jaguar urrando no campo aberto,
sopro da brisa no rosto molhado.
E toda noite revivo a lembrança do morto,
aquele sorriso de sofrimento,
estampado na água do rio sem porto.
E ficou no ar gelado o aceno em vão,
a sineta no cordeiro imolado,
e o sangue do altar derramado ao chão.