quarta-feira, 5 de agosto de 2020

87. DE MÃOS DADAS XXX

Não se preocupe, eu te escuto.

Não vou embora.

Não vou desistir de você.

 

Tá tudo escuro lá fora,

somente os gatos da madrugada rompem o silêncio.

A rua está deserta, exceto por alguém atrasado,

ansioso por chegar em casa

 

No alto do bairro, dá pra ver os telhados, lá em baixo.

O céu denso, nuvens grossas tapando a luz da lua.

 

Tua mão de parkinson ainda me abençoa,

mas já foi firme como aço,

desde os tempos das grandes jornadas

nas estradas e nos rios do sertão.

 

Você me manda embora, toda noite.

Eu espero, te olhando, em pé, com as chaves na mão.

 

Eu demoro um pouco, conversando coisas do passado.

Faço você rir, em lampejos de lucidez.

 

Tua raiva não faz mais sentido, não é real.

Nossa conversa é como uma pescaria paciente,

onde se espera o momento em que volta o peixe da consciência.

 

E depois do beijo e do abraço eu me vou.

Mas voltarei, sempre. Não haverá partida.

 


86. PSICOGÊNESE XXX

Choveu no dia em que minha mãe me pariu.
Era noite, ela, urrando de dor, segurava um terço.
Meu pai fumava antes de entrar na sala de parto.

Dizem que chorei com estrondo,
tardei chegar, por isso não me chamaram Sebastião.

Era mês de chuva, 
os campos alagavam os baixões de mururu.
O festejo alegrava a cidade, a notícia chegara da Ilha.
Houve algazarra, canoeiros brindaram a cachaça,
a parentada disse amém, quando o rádio avisou.

Minha mãe sofrera, assim como no primogênito.
Eu viera ao mundo grande e forte,
e olhava para o sol na janela aberta, 
com um sorriso multiagudo no lábio de colibri.

De lá para cá, ouço o trotar de cavalos loucos na mente.
Uma brisa estranha sopra no meu peito,
que arqueja folhas secas do verão
e meus olhos rangem os dentes pro silêncio.

Vejo vultos informes nos corredores
e cães uivando longamente pro céu curvo e iluminado.

Desde que vim ao mundo é a mesma coisa:
revoada de pássaros 
atravessando o lago triste do coração.