segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

66. RIO DE PEDRA

Minhas manhãs anoitecem no rio 

onde Iaras resplandecem as escamas

e o tucano alonga o bico em chamas,

resvalando o olho no meu desvario.


Minha riqueza é o inventário do sol

e milhões de partículas flutuando,

um trono de pedra, pássaro voando,

e o entardecer crucificado no anzol.


A liberdade vai além da lua morta,

onde o pensamento voa como uma harpia.

É simples, perigoso e ninguém se importa


com esse clarão na casa vazia,

o coaxar de sapos na mente absorta

e o silêncio de ferro que a água urdia.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

65. REENCONTRO


Fazia tanto tempo que eu não te via.

Fui envelhecido pela  distância,

mais por um escaravelho da infância,

do que pelo tempo que em mim cabia.


Você não mudou. Minha nostalgia

de não poder tê-la perdeu a importância.

Estamos longe, na fria ignorância

do nosso destino, sem alegria.  


Quando você partiu era um sol glacial

queimando meu rosto paralisado,

de fogo e frio, alívio capital.


Hoje eu colho rosas do meu passado,

num imenso jardim coberto de sal,

e o mar invadiu meu rosto queimado.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

64. MARCADO PRA MORRER

Em memória de Flaviano Neto, líder do quilombo Charcho, 
em São Vicente de Férrer, assassinado em 30 de outubro de 2010.


Dia de receber notícia da morte:

uma serpente que levanta a folha,

o escorpião oculto na terra zarolha,

o espinho de tucum vigiando a sorte.


Quisera saber que fora abraçado,

sem saber que a morte estava por perto,

um jaguar urrando no campo aberto,

sopro da brisa no rosto molhado.


E toda noite revivo a lembrança do morto,

aquele sorriso de sofrimento,

estampado na água do rio sem porto.


E ficou no ar gelado o aceno em vão,

a sineta no cordeiro imolado,

e o sangue do altar derramado ao chão.



domingo, 7 de janeiro de 2018

63. DOUTRINA

Sou apenas esse cavaleiro enlouquecido

sem o medo de me atirar no abismo.

Toda vez que me alcança o paroxismo

do ódio adormeço o pavor comedido.



Meu ginete bufa e salta, aguerrido,

entre alba e noite, suave antagonismo,

por onde arremeto o sonambulismo

da cruz e do espinho, o peito ferido.


No tinir dos ferros e da espora,

nunca temi a morte, nem o trovão

que no martelo de Badé evapora.


Passo firme, ateio o fogo com a mão,

carrego a toalha no ombro e vou-me embora,

filho que sou do aço e do trovão.